Convivência com o Semi-Árido, por João Suassuna
[EcoDebate] O Semi-árido brasileiro, também chamado de Sertão – cenário geográfico onde ocorrem as secas – abrange os seguintes estados: Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Bahia e o Vale do Jequitinhonha, no norte de Minas Gerais. Estima-se nele uma população de cerca de 20 milhões de pessoas das quais, no exacerbar de uma seca, 10 milhões passam sede e fome. É uma região de elevadas temperaturas (média de 26º C), onde o regime pluvial é bastante irregular. A média pluviométrica anual oscila entre 400 e 800 mm, com volume anual precipitado estimado em cerca de 700 bilhões de m³. Os solos são geralmente rasos, pedregosos (escudo cristalino), com ocorrência de vegetação do tipo xerófila.
Essas condições ambientais intrínsecas ao solo e ao clima servem de base para a sua classificação em zonas: caatingas, seridó, carrasco e agreste. As estiagens prolongadas ocorrem ciclicamente, trazendo efeitos nocivos para a economia da região e acarretando custos sociais elevadíssimos.
A economia da região – ainda que mais industrializada hoje do que há anos atrás – está baseada no setor primário, um complexo de pecuária extensiva e agricultura de baixo rendimento.
Uma reflexão apropriada sobre essas questões precisa ser feita por quem queira compreender o potencial dos recursos naturais do Semi-árido e, principalmente, os elementos biológicos que nele vivem. O enfoque principal desses assuntos constitui fundamentalmente o programa de trabalho do Instituto Nacional do Semi-árido – INSA, em Campina Grande, PB.
Pouco se teria a inventar mas muito a aprender com a diversidade da sua natureza, pensando conceitualmente na semi-aridez como vantagem.
Plantas e animais adaptados
Atualmente, é indispensável no Semi-árido a ampliação de trabalhos que visem ao tratamento adequado dos elementos biológicos – plantas e animais – afinados com a natureza peculiar do clima e com a circunstância sócio-cultural da região.
A identificação de forrageiras adequadas e a produção básica de suas sementes é um processo paralelo peculiar. Para a revogação da pobreza no meio rural nordestino há de se começar levando em conta essas peculiaridades.
A prioridade natural do uso da terra e a harmonia necessária entre os animais e o ambiente apontam para a concepção de sistemas de produção específicos, permanentes, que devem começar pela escolha das espécies apropriadas, sejam de animais, sejam de vegetais.
A vegetação natural – a caatinga – é rica, mas carece de maiores estudos, visando à perenização do seu extrato herbáceo e à racionalização do seu uso.
É de fundamental importância o desenvolvimento de trabalhos visando à preservação de ruminantes de pequeno porte, através da multiplicação das diferentes raças de cabras e ovelhas nativas do nordeste seco, portadores de funções produtivas múltiplas: para leite, pele e carnes. São as cabras vivazes, de pêlos curtos, e as prolíficas ovelhas deslanadas, de pele e carne superlativas.
Quanto aos bovinos, é importante a escolha de raças zebuínas, originárias dos pré-desertos da Ásia, produtoras de leite rico, de oportuna competência para digerir materiais fibrosos e dotadas de carcaça enxuta, com carnes sadias. Paralelamente ao Guzerá e ao Sindi, o gado “pé duro” do Piauí também deverá ser escolhido devido à sua adaptação ao Semi-árido desde o período colonial e ao seu enorme potencial produtivo, de baixo custo.
O trabalho deve ser voltado especificamente para o melhoramento funcional e seleção inovadora, através de controles zootécnicos desse importante acervo preservado, de admirável frugalidade e sintonia fisiológica com os caprichos da natureza regional, num ajuste de cinco séculos.
Esses animais, além da dimensão zootecnológica, fazem parte da história de vida dos nordestinos, tendo fornecido leite, couro, carne e trabalho aos nossos antepassados, inserindo-se em nosso patrimônio sócio-cultural.
A questão hídrica
Cerca de 70% da superfície do Semi-árido nordestino têm geologia cristalina. Nesse tipo de estrutura edáfica, os escoamentos superficiais são muito maiores do que a parte que se infiltra no solo. Essas características dos solos nordestinos resultaram em corridas desenfreadas para a construção de represas, visando ao armazenamento das águas para posterior aproveitamento. Estima-se atualmente, no nordeste seco, um quantitativo de cerca de 70.000 represas de pequeno, médio e grande porte.
As represas da região acumulam um potencial de cerca de 37 bilhões de m³. É o maior volume represado em regiões semi-áridas do mundo. Apesar disso não há uma política, na região, que garanta o abastecimento eficiente de suas populações, principalmente aquelas localizadas de forma difusa. A malha de adutoras que permite o acesso das águas às populações é incipiente. O resultado disso é a existência de um número expressivo de famílias vivendo, em sua maioria, no entorno das principais represas nordestinas, sem ter acesso ao precioso líquido. Além do mais, não existe vontade política para resolver esse tipo de situação, que perdura há séculos e aflige milhões de nordestinos.
Fala-se muito na água do subsolo para se resolver, de vez, os problemas hídricos da região semi-árida. Esta é uma alternativa importante, mas não é a solução para todo o problema. Dadas as características geológicas da região, há poucas possibilidades de acúmulos satisfatórios de água nesse meio. Elas ocorrem nas fraturas das rochas e nos aluviões próximos de rios e riachos. Em geral, essas águas são pouco volumosas (os poços secam aos constantes bombeamentos) e freqüentemente de má qualidade. As águas que têm contato com esse tipo de estrutura se mineralizam com muita facilidade, tornando-se salinizadas. A título de exemplo, estima-se que 35% dos 60.000 poços escavados no cristalino do Nordeste estejam secos ou obstruídos, ou com água inadequada ao consumo humano. O uso do dessalinizador em tais casos é antieconômico, pois 1 m³ de água dessalinizada custa cerca de US$ 0,80 (oitenta centavos de dólar). Todavia, é importante a exploração racional das regiões nordestinas de geologia sedimentária, evitando, sempre que possível, os desperdícios d’água, a exemplo daqueles existentes no estado do Piauí, que não aproveita de forma satisfatória as águas dos poços jorrantes escavados na região do vale do rio Gurgüéia, no município de Cristino Castro. Os poços jorram 24 horas por dia e não existe um projeto de uso adequado que justifique o programa de perfuração ali realizado.
Alternativas para a solução do abastecimento difuso no Nordeste existem e podem ser implementadas a custos relativamente baixos. A Asa Brasil – por exemplo – é uma organização não governamental que vem difundindo uma série de tecnologias de acumulação de água no Semi-árido, a exemplo das cisternas rurais, barragens subterrâneas, barreiros trincheiras e mandalas, visando a solução dos problemas dessa parcela da população considerada a mais carente em termos de recursos hídricos.
Outra alternativa para a solução dos problemas de abastecimento das populações do Semi-árido foi posta em prática, em dezembro de 2006, pelo próprio governo federal. Trata-se da edição do Atlas Nordeste de Abastecimento Urbano de Água. Esse trabalho estabelece um diagnóstico preciso da atual situação hídrica nordestina, com proposta de solução para o abastecimento através do uso de adutoras (tubulações), beneficiando cerca de 34 milhões de nordestinos.
Recife, 27 de novembro de 2007.
João Suassuna – Engº Agrônomo e Pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco, colaborador e articulista do EcoDebate