Porque o planeta está se exaurindo, por Federico Rampini
Como repensar o futuro a partir da terra, da água, do ar. A desertificação e a poluição, o clima enlouquecido, eis onde andamos. Cresce em medida descomunal no mundo a demanda de energia. Estes são alguns dos temas tratados pelo artigo de Federico Rampini, jornalista, correspondente na China, do jornal italiano Repubblica, 16-11-2007.
Eis o artigo.
Bomba demográfica ou, mais brutalmente, “perigo amarelo”, assim se falava na época de Mao, e, no entanto, os chineses eram menos da metade e tudo o que solicitavam era uma taça de arroz por dia. O verdadeiro limite ao desenvolvimento eram, então, os dramáticos erros dos governos, a falta de capitais, de tecnologias, dos incentivos corretos. Hoje, o único limite sério é outro: a exaustão dos recursos naturais.
Em 1950, a China criava apenas um por cento das emissões mundiais de CO2. Era como se não existisse. Neste ano superou os Estados Unidos, tornou-se a maior produtora de anidrido carbônico largado na atmosfera terrestre. E, nos próximos sete anos, as novas centrais termoelétricas que a China porá em funcionamento serão superiores a todas as que existem na União Européia. Cada colono chinês que abandona a agricultura e se transfere à cidade para trabalhar como operário em fábrica ou como pedreiro nos canteiros de obras, aumenta em média em 700 por cento o seu consumo total de recursos naturais. A cada ano são em média 15 milhões os chineses que deixam as lavouras, atraídos pelas metrópoles industriais ou expulsos de uma agricultura demasiado pobre para mantê-los. Chonquim tem 30 milhões de habitantes, Pequim e Shangai se aproximam dos 20 milhões cada uma, várias outras cidades com Canton, Shenzhen, Hong Kong, Hangzhou, Tianjin, Chengdu, Nanchino, se avizinham ou superam o limiar dos 10 milhões. As cidades “médias” como Xian, Harbin, Dalian, vão além dos cinco milhões de habitantes – uma dimensão que Roma e Milão jamais atingirão – serão em breve uma centena. A metade de todas as novas rodovias e de todas as instalações urbanas surgiu no início desta década.
O desenvolvimento chinês é acompanhado por um fenômeno de urbanização que, por sua escala dimensional e por sua rapidez, não tem precedentes na história humana. Dentro de vinte anos os chineses terão 270 milhões de automóveis e seu consumo de energia será mais do que duplicado. Na Índia as áreas metropolitanas de Nova Delhi e Mombaim têm trinta milhões de habitantes cada uma: somadas, superam a população de toda a Itália. A demanda de energia da Índia (um bilhão e cem milhões de habitantes) será mais do que duplicada até 2030, e a maior parte daquela demanda adicional deverá ser importada.
Estas previsões, discutidas sem trégua na opinião pública ocidental, levam-nos a dizer que “não há mais lugar no planeta”. A questão dos recursos naturais avança ao primeiro lugar entre nossas preocupações. Volta-se a falar de penúria de petróleo. Há trinta anos atrás a energia nos foi negada por um conflito geopolítico (o embargo da Opep após a guerra árabe-israelense do Kippur), hoje começamos a temer que será a voracidade das novas classes medias chinesas e indianas que enxugarão os poços do Golfo Pérsico. Petróleo e gás não são os únicos recursos ameaçados de exaurimento. Habituados há algumas gerações a viver numa economia urbana, afastada da agricultura, descuidamo-nos da escassez das terras cultiváveis. Habituados a vê-la correr quase de graça – e limpa – pelas nossas torneiras, esquecemos que no mundo inteiro a água é preciosa, rara, e em processo de diminuição. A terra e a água são fontes de potenciais conflitos, pelo menos quanto à matéria virgem. A China tem apenas oito por cento das reservas de água potável do planeta, mas deve manter em vida os 22 por cento da população mundial. 58 por cento dos rios chineses são tóxicos. Fortes desequilíbrios e disparidades regionais existem também no interior da China: sua parte setentrional, que tradicionalmente era o “celeiro” nacional com 60 por cento de toda a terra cultivável, tem somente 14 por cento dos recursos hídricos do país, o que constringe o governo de Pequim a projetar titânicas obras de derrotamento de rios do sul ao norte. A situação piora com a desertificação que avança. A China está sofrendo a maior transformação de terras férteis em deserto que jamais ocorreu na história humana. Os grandes rios que irrigam a Índia sofrem pelo degelo dos glaciais do Himalaia. A falta de água abre cenários inquietantes para o abastecimento alimentar. Hoje a superfície agrícola disponível para produzir cereais já é reduzida. 650 metros quadrados por habitante na Índia, 600 na China, contra 1.900 nos Estados Unidos.
Por efeito do simples aumento da população – sem contar a perda ulterior de terras aráveis pelo efeito da urbanização – daqui a menos de vinte anos esta superfície agrícola terá baixado a 530 metros quadrados per capita na China e 520 na Índia, com possíveis repercussões sobre os níveis dos preços, a estabilidade social, as tensões geopolíticas com o resto do mundo. Historicamente, as situações de insegurança alimentar têm sido, junto as crises de insegurança energética, freqüentemente associadas à explosão de conflitos militares. Não é dito que estes conflitos devam explodir dentro dos confins da China/Índia. Estes dois gigantes, graças à sua nova riqueza, podem descarregar sobre outros os seus problemas alimentares. A China, fábrica do planeta e formidável exportadora de manufaturados, poderá adquirir cotas crescentes de suas necessidades alimentares. Fazer provisão de alimentos nos mercados mundiais equivale a comprar água: cada quilograma de cereais que Pequim importa do exterior requereu um metro cúbico de água para ser cultivado. Também a Índia, graças a um crescimento fundado sobre a “matéria cinzenta”, poderá vender software informatizado em troca de produtos agrícolas. Mas, neste mundo o problema da penúria de água se desloca simplesmente para qualquer outro lugar.
O aumento do consumo alimentar asiático já está criando tensões nos preços. A inflação dos preços alimentares alcançou, na China, mais de 17,6%. Estes encarecimentos, se protraídos por mais tempo, podem pôr em perigo a paz social mesmo num colosso industrial como a República popular. O impacto será ainda mais desestabilizador se a inflação alimentar provocada pela China/Índia se difunde em países do Terceiro mundo com um poder aquisitivo muito mais baixo. Tal espiral adversa já se vê em obra pelo boom dos biocarburantes, incentivado pela pesquisa de fontes alternativas de energia. Bioetanol e biodiesel disputam as terras cultiváveis para a alimentação humana ou animal, os preços do pão e da massa registram esta inédita concorrência com os tanques dos automóveis. O espectro da penúria encerra o risco de fazer-nos esquecer as enormes iniqüidades que ainda caracterizam o consumo dos recursos naturais. A definição clássica da sustentabilidade ambiental reza assim: é sustentável um desenvolvimento econômico que pode satisfazer as necessidades do presente sem comprometer as possibilidades de que também as gerações futuras satisfaçam as deles. Parece claro.
Mas, quem estabelece as necessidades do presente? O petróleo, do qual o consumidor italiano decidiu ter “necessidade”, é ainda o triplo daquele consumido por um chinês. A sustentabilidade não se mensura somente na vertical, na solidariedade entre nós e as gerações futuras. Deve declinar-se também na horizontal, numa repartição equânime entre as gerações atuais. Ter nascido na Índia ou na China significa ter direito a uma cobertura mais restrita, onde racionar o consumo vem muito antes de ter atingido um modesto bem-estar? A escassez dos recursos é relativa. Para um indiano emigrado para Londres, a água parece um bem ilimitado e a bom mercado: tomar um banho de espuma todas as noites deixa uma marca quase invisível na despesa mensal. Para seu distante primo que permaneceu numa aldeia de Bengala, o caminhão cisterna de água potável passa uma vez por dia, e há uma longa fila de gente que o espera.
(www.ecodebate.com.br) artigo publicado pelo IHU On-line, 24/11/2007 [IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]