Neoconservadorismo e seus cães de guerra, por Maria Inês Nassif
[Valor Econômico] O filme “Tropa de Elite”, de José Padilha, é assustador porque sua intenção de retratar uma realidade – o Batalhão de Operações Especiais (Bope) da Polícia Militar do Rio é violento, porém não é corrupto – acabou trazendo à luz do dia uma radicalização que estava latente na chamada opinião pública. Se antes existia um certo recato de defender a violência policial como um “mal necessário” numa sociedade violenta, parece que esse prurido caiu definitivamente por terra. O Brasil mostrou que existe uma parcela de pessoas que considera como direito inalienável a segurança individual, mesmo quando ela representa a insegurança de camadas da população mais vulneráveis às pressões dos agentes públicos, do tráfico de drogas e até às distorções legais e judiciárias. E essas pessoas encontram no discurso anticorrupção a justificativa ética para a defesa da violência policial. O perfil do Bope cai como uma luva para esses neoconservadores.
Ainda bem que existe uma outra parcela que, ao perceber a existência de um seu contrário numericamente maior e mais poderoso do que se supunha, recolocou a questão dos direitos humanos na agenda do país na frente da própria segurança pública. O abaixo-assinado que corre no Rio contra a política de confronto adotada pelo governo do Estado em áreas carentes, que tem produzido vítimas “civis” da polícia aos montes, é um ato de humanidade que anda meio esquecido. É desalentador, no entanto, que, a exemplo dos movimentos pelos direitos humanos no período da ditadura, os organizadores do abaixo-assinado tenham que se dirigir a uma entidade internacional para denunciar desmandos policiais. O documento foi entregue ao observador da Organização das Nações Unidas (ONU) Philip Alston, relator para os crimes de execução sumária, que está no país para investigar as denúncias de execuções sumárias feitas pelas polícias brasileiras.
O discurso que justifica a violência social não é apenas conservador, mas tão claramente elitista que deixa ruborizada qualquer pessoa com uma mínima sensibilidade social. A visão de que há uma guerra em curso, e que faz parte da guerra a morte de inocentes – foi esse, em última instância, o argumento usado pelo secretário de Segurança do Rio, José Mariano Beltrame, para justificar as ações de sua polícia no Complexo do Alemão e na Favela da Coréia – é empunhada com surpreendente naturalidade por aqueles que gastaram papel e saliva para defender o direito do apresentador Luciano Hulk de ter um Rolex sem ser importunado por ladrões. A “guerra” justifica a invasão de comunidades pobres e a exposição de suas populações a tiroteios e mortes – ela existe, enfim, para os pobres, mas não pode expor vidas da população de mais alta renda, muito menos ameaçar sua propriedade.
Bope caiu como luva: é violento, mas não corrupto
A “guerra” justifica a militarização da segurança pública; ela é contra a favela. Não é o criminoso violento o objeto da repressão, mas o aglomerado de pobres circunscritos num espaço urbano definido como favela, no Rio, ou periferia, em São Paulo. A favela e a periferia passam a ser, nessa visão autoritária e elitista, a personificação do crime – é o que se chama de criminalização da pobreza. O efeito colateral de uma repressão violenta a esses espaços geográficos de exclusão – a morte de inocentes – é menos condenável do que o roubo de um Rolex de propriedade de uma celebridade.
Se “Tropa de Elite” já mostra essa face da “guerra”, o livro “Elite da Tropa” (de Luiz Eduardo Soares, André Batista e Rodrigo Pimentel), que inspirou o filme, não deixa dúvidas de que a ação de segurança pública tornou-se uma operação militar contra a favela. A começar pelos cantos de guerra do Bope lá reproduzidos. “Homem de preto, / qual é sua missão? / É invadir favela / e deixar corpo no chão” – esse é um dos motivadores do grupo de elite da polícia do Rio. “Alegria, alegria, / sinto no meu coração / pois já raiou um novo dia / já vou cumprir minha missão. / Vou me infiltrar na favela / com meu fuzil na mão, / vou combater o inimigo, / provocar destruição”, diz outra canção. E que tal essa: “Sou aquele combatente, / que tem o rosto mascarado; / uma tarja negra e amarela, / que ostento em meus braços, / me faz um ser incomum: / um mensageiro da morte. / Posso provar que sou forte, / isso se você viver. / Eu sou… herói da nação.” E por fim, a autodefinição maldita, daquele que luta numa guerra maldita, porém necessária: “Você sabe o que eu sou? / Sou o maldito cão de guerra. / Sou treinado para matar. ? Mesmo que custe minha vida, / a missão será cumprida, / seja ela onde for / espalhando a violência, a morte e o terror.”
Os cães de guerra dos neoconservadores fazem a política de extermínio. Isso é querer acabar fisicamente com a pobreza. E é surpreendente.
Maria Inês Nassif é editora de Opinião. Escreve às quintas-feiras
(www.ecodebate.com.br) artigo publicado pelo jornal Valor Econômico – 08/11/2007