De Presidiárias a Cidadãs: Nossa Família tem aumentado muito! por Prof. Virgílio de Mattos, Profa Delze dos Santos Laureano e Frei Gilvander Moreira
“O problema não é inventar. É Ser inventado. Hora após hora e nunca ficar pronta nossa edição convincente”.
No início dessa primavera de 2007, o grupo de pesquisas sobre Violência, Criminalidade e Direitos Humanos, da Escola Superior Dom Hélder Câmara – ESDHC -, marcou o percurso de dois anos de pesquisa-ação no Complexo Penitenciário Feminino Estevão Pinto, em Belo Horizonte, com uma festa “em família”, no refeitório do presídio. Em família, porque comemoramos até o aniversário de um dos integrantes do grupo de pesquisa, o Marcelo, que fez questão de, neste ano, fazer ali a sua festa.
Fato tão inédito não permite a omissão de presenças: a maioria das 250 presas, a direção da penitenciária, o Secretário de Assuntos Prisionais do Governo do Estado, o superintendente de movimentação e segurança dos presídios, o juiz da Vara das Execuções Penais, Dr. Herbert Carneiro, e da lª Vara de Família, Dr. Newton Teixeira Carvalho – atual coordenador das pesquisas da ESDHC -, estudantes, parceiros/as e os professores João Batista Moreira Pinto, Guilherme Portugal e Mark Nápoli – além, obviamente, dos signatários deste texto. Ressalte-se um ponto muito importante da comemoração: a presença dos parceiros e parceiras do projeto de pesquisa que, pela primeira vez, estiveram do lado de dentro da prisão. Referimo-nos especificamente ao Celso, da Look Cosméticos, e à direção do SINDIELETRO , que têm contribuído para criar novas expectativas em pessoas que há muito tempo só viam portas fechadas à sua frente.
É impossível descrever a emoção naquele ambiente durante a apresentação do vídeo, edição das imagens das protagonistas registradas nos dois anos de presença da equipe de pesquisa no presídio. Mulheres que não se viam, corpo inteiro, há tanto tempo, já que não existem espelhos nas celas, exceto pequenos círculos que permitem refletir a imagem dos rostos. Na tela, lá estavam elas, sorridentes, com seus uniformes azul e branco, os chinelos de borracha contrastando com as botas militares das guardas penitenciárias. Os trejeitos das detentas, suas caras e bocas mostraram para todos nós a humanidade dentro do presídio, registrada pelas câmeras. Sonho não, pareciam mesmo artistas de cinema, mostrando ao mundo um outro universo por detrás das grades. Todavia, o primeiro mundo que realmente abriu alguma porta para aquelas mulheres, antes sobrevivente de uma sociedade cercada por grades invisíveis. É um paradoxo, para muitas é a primeira experiência efetiva de vida em sociedade, ainda que fora da sociedade.
Foi uma festa simples, mas de intenso significado humano e político. Demonstrou-se que é possível um outro olhar e uma outra práxis, e não apenas punição pelo cometimento de um delito. Aliás, qual delito? O que pode cobrar uma sociedade que negou quase tudo a esses seres humanos?
Algumas presidiárias usaram o microfone e agradeceram o apoio que estão recebendo. Estão estudando, fazendo curso de artesanato e muitas até se prepararam para fazer o ENEN, ainda que na última hora tenham amargado o adiamento da realização de um sonho. “Sofremos uma rasteira ao recebermos a notícia que não poderíamos fazer o ENEN. Estávamos entusiasmadas com a possibilidade. Estávamos nos preparando com afinco”, reclamou uma das detentas, com a leveza de quem aprendeu a esperar, denunciando mais uma injustiça.
O empresário Celso, ex-detento, partilhou a sua experiência. Já deu emprego a uma das presas e quer empregar mais, pois afirma “como eu dei a volta por cima, assim vocês também darão. Acreditem em vocês mesmas e contem conosco”, arrematou ele.
O representante do SINDIELETRO afirmou estar feliz porque o Sindicato estava participando do programa de inclusão digital ao oferecer computadores para as presidiárias fazerem cursos de digitação e computação. “Estamos aqui porque sindicato não é só pra categoria, é pra sociedade”, finalizou ele.
Naquela tarde, tivemos a clareza de que o trabalho com os nossos parceiros não visa apenas melhorar a vida daquelas mulheres ali dentro, dando-lhes confiança para tocar a vida, ou criando condições fáticas para que possam viver, aqui fora, de modo diferente do que viviam antes de serem condenadas. A luta demanda três transformações: a das prisões, a das presidiárias e a da sociedade. Diante de tantas mazelas reveladas nos damos conta do mundo que as espera aqui fora. Muito pior do que os desafios que enfrentam por detrás das grades naquela prisão.
Há grades não só nas prisões. A sociedade capitalista está cheia de grades invisíveis, mas reais, que aprisionam tanta gente mesmo fora do sistema penitenciário. A terra seqüestrada nas cercas do latifúndio. Empresas públicas e privadas que tratam água e energia como mercadoria, nas centenas de barragens que já atingiram mais de 1 milhão de famílias. Essas mesmas empresas que aprisionam a água e condenam ao extermínio a fauna aquática. O analfabetismo e a educação formal de péssima qualidade que perpetuam o desemprego e a exclusão da população pobre. O tráfico de drogas que faz reféns milhares de jovens anualmente. O preconceito que camufla o racismo. A exploração da indústria farmacêutica que prioriza o tratamento químico das doenças em detrimento das práticas efetivas pela saúde da população. As grades da alimentação contaminada pelo excesso de agrotóxicos, muitos deles proibidos em outros países. As grades da violência que fazem reféns em seus próprios domicílios pessoas amedrontadas com a vida fora dos muros. A prisão de tantos que pensam desejar, quando os meios de comunicação desejam por eles.
Ali dentro da prisão percebemos como a convivência fez desmoronar um edifício de preconceitos. Passamos a ver naquelas mulheres não criminosas, mas pessoas que foram, em regra, empurradas para o crime. Foi emocionante quando entraram as mais de 20 mães presas com seus filhinhos no colo. As crianças pareciam nos perguntar: “Por que estamos aqui? Não somos inocentes? Por que mamãe está aqui? Por que não podemos brincar lá fora? Até quando ficaremos aqui?”
De fato, somado a tantas lutas que travamos contra as cercas “invisíveis” daqui de fora, temos superado a maior dificuldade de todas, a do preconceito. Como isso é possível? Simples: não nos preocupamos com o crime cometido, mas com a cidadã que o cometeu. Não olhamos para trás (quem anda olhando para trás não avança e corre o risco de tropeçar e cair!), mas nos preocupamos com o futuro dessas mulheres e com a sociedade que podemos construir a partir de nossas utopias.
Naquele momento, comemoramos porque temos o que comemorar. Quando nada, esse crescimento de nossa família. A família dos que crêem que é impossível o silêncio e o comodismo diante da barbárie. Essa idéia patética de encarcerar gente. Comemoramos a comunhão de um grupo que, no seu início, era apenas uma idéia. E de tanto acreditar no sonho de que um mundo novo é possível, acabou construindo uma espécie de novo mundo no sonho das presas e de seus familiares.
Nós somos todos da mesma família! A grande família dos explorados, dos deserdados do campo e da cidade. Dos sem nada. Dos que se fazem companheiros. Todo mundo amigo/a. Quando não temos a solução para um problema – e na maior parte do tempo nesses dois anos o que mais tivemos foi ausência de solução! – rimos de nós mesmos; “não ter solução já é uma solução, pra quem não tinha nenhuma até aqui”.
E foi nessa família que já produzimos um livro (A legibilidade do ilegível. BH: Fundação Movimento e Cidadania, 2006), vários filmes, fotos, exposições. Vemos que é preciso desesperadamente integrar as mulheres que estão no regime semi-aberto – que podem trabalhar fora da penitenciária durante o dia, voltando para a prisão apenas à noite e nos finais de semana. Uma atividade produtiva que lhes possa garantir o sustento. Nenhuma mágica: caso contrário, serão levadas ao mesmo sistema que lhes empurrou para a penitenciária.
Para contratar uma dessas presas, que estão no regime semi-aberto, basta que se lhes seja oferecido um “termo de aceite de trabalho externo” (ver, em anexo, o modelo). Não há a incidência de impostos nos termos da CLT. O contrato de trabalho é regido pela Lei de Execuções Penais (Lei n. 7.209/84), registrado na Vara de Execuções Penais e acompanhado pelo Grupo de Pesquisas Violência, Criminalidade e Direitos Humanos, que também capacita ambos (contratador e presidiária).
Já testamos, nos últimos 2 anos, com sucesso, algumas possibilidades que viraram realidade, além de fazer manter a esperança: em restaurantes, serviços de medicina, beleza, universidade, e tantas outras possibilidades. Precisamos de mais, de muito mais.
Pode parecer paradoxal, mas no fim, reduzindo a possibilidade de inserção apenas no sistema penitenciário, fazemos o que a pena privativa de liberdade não faz, definitivamente não consegue fazer, que é a inserção na sociedade. Inserção produtiva. Inserção produtiva, mas crítica.
É BOM QUE SE DIGA BEM ALTO: NÃO QUEREMOS, NÃO PRECISAMOS, NÃO ESTAMOS PEDINDO E NEM ACEITAMOS DINHEIRO.
Se você, que agora lê este texto, tem alguma idéia, se pode participar de alguma forma – de perto ou de longe – faça contato conosco, é bom sabermos que nossa família tem aumentado muito, mesmo em tempos tão sombrios. Com a mesma união e esperança que rezamos de mãos dadas a oração do Pai Nosso naquele dia, sentimos que a bênção que irradiava de dentro da prisão deve ser a que podemos levar no coração: a utopia de transformar todas as prisões em escolas.
Apenas uma última observação: aquele prédio foi construído para ser uma escola. Deve cumprir essa sua vocação às últimas conseqüências.
Prof. Virgílio de Mattos, e-mail: virgiliodemattos@terra.com.br
Profa. Delze dos Santos Laureano, e-mail: delzesantos@hotmail.com
Frei Gilvander Luís Moreira, e-mail: gilvander@igrejadocarmo.com.br
Belo Horizonte, 30 de setembro de 2007.
1 C.D.A. Canções de Alinhavo, Poesia Completa. RJ: Nova Aguilar, 2002, p. 1258.
2 Sindicato Intermunicipal dos Eletricitários do Estado de Minas Gerais.
TERMO DE ACEITE DE TRABALHO EXTERNO
___________________________,QUALIFICAÇÃO, INFOPEN n. , interna no Complexo Penitenciário Feminino Estevão Pinto desde 00/00/0000, declara aceitar o trabalho remunerado oferecido pela empresa (ou residência) xyz, estabelecida na Rua , n. , Bairro , Capital, CNPJ n.000.000000000-00 (ou CPF do empregador, caso seja pessoa física), neste termo representada por seu representante legal, Sr.___________________________________ , para executar as atividades de _______________, DE 07 (SETE) às 19 (dezenove) horas, de segunda à sexta e, aos sábados, de 07 às 13 horas, conforme o artigo 36, parágrafo 3º da Lei de Execução Penal (Lei n. 7.210/84).
Belo Horizonte, de de 200 .
publicado pelo EcoDebate.com.Br – 05/10/2007