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Artigo

Carne de Veado-Campeiro é ecologicamente ruim, por Carlos Eduardo Rossi

[EcoDebate] A carne é um alimento básico para os seres humanos e, para isso, domesticaram-se diversos animais. É difícil imaginar a humanidade não se alimentando de carne. Até os vegetarianos comem feijoadas, espetinhos e ensopados com uma imitação de carne à base de proteína texturizada de soja. Bem, apesar do que parece, não é o rumo desse artigo reverter ou converter o hábito carnívoro das pessoas, se é que alguém cogitou isso. Trata-se de um alerta, bem atual, para conscientizar sobre a proteção de certos animais silvestres que outrora eram caçados e proporcionavam parte da dieta de sobrevivência. Hoje, essas carnes não podem constar nos “cardápios”, porque quase não existem mais na natureza e porque esses animais atendem a importantes funções ecológicas.

Reconhece-se na mudança de dieta, ou seja, no início da alimentação de carne, há 2,5 milhões de anos atrás, um essencial catalisador da evolução humana, segundo estudos realizados por dois cientistas americanos, Caleb Finch e Craig Stanford. A população brasileira, cheia de regionalismos, cria bode, peixe, boi, porco e até avestruz. Algumas dessas criações mudaram totalmente a paisagem do planeta, pois para se criar tantos animais precisa-se de muito espaço. Exemplo disso são as criações de gado bovino. Viajando pela rodovia entre Alta Floresta à Nova Bandeirantes, no norte do Estado de Mato Grosso, a paisagem é única e extremamente monótona: pastos e mais pastos com bois. O nível de grandeza permite imaginar se haverá tantas pessoas para se alimentarem de tantos animais? O mesmo acontece em Petrolina, importante cidade de Pernambuco, com o bode. Aliás, bife de vaca é iguaria rara por lá.

Da mesma forma, porém por outra perspectiva, numa viagem de Goiânia a São Paulo, pela janelinha do avião, há 10.000m de altitude, verifica-se que os pastos recobrem grandes partes dessas terras representadas pelas imagens verdes claras. Nesse belo tapete, despontam manchas descontínuas de uma tonalidade verde escura: as matas. Nessas manchas vivem, ou melhor, tentam sobreviver, uma fauna e uma flora outrora rica. A informação histórica do desfecho das árvores nobres brasileiras é abundante. Talvez, o pior exemplo seja com aquela que cedeu seu nome ao país: o pau-brasil.

Pensando no domínio da natureza, onde índio e mato atrapalhavam o progresso da agricultura, o homem “civilizado” atropelou os moradores dessas terras e devastou as florestas. Cortaram-se árvores, mataram-se os animais: alguns pela carne, outros pelo couro. Poucos escaparam. Só na mata atlântica, hoje existem apenas 5% do que existia no passado. Em muitos casos, não houve tempo hábil para se conhecer o que lá havia, muito menos conhecer a função ecológica de cada ser vivo. Apesar dos exploradores, surgiram mentes conscientes da devastação e das conseqüências devastadoras para todas as vidas, inclusive as humanas.

Surgiram movimentos de defesa da vida selvagem. Surgiram os parques, as reservas, as áreas de proteção ambiental. Aquelas manchas que qualquer viajante vê da janela do avião. Nesses locais, os cientistas estudam e conhecem quem são os seres vivos que compartilham espaço com os humanos e entendem a função deles na manutenção da vida e do equilíbrio. Descobriu-se muita coisa. A mata nativa é auto-suficiente. Ela tem mecanismos de auto-regulação. Há um equilíbrio perfeito entre todos os seres vivos. E o que isso quer dizer? Um depende do outro. Se uma grande árvore cai, o espaço vazio é recomposto rapidamente. O solo é sempre protegido. Os minerais, nutrientes às plantas, se reciclam constantemente. As folhas caem das árvores, são decompostas, e os nutrientes ali contidos são reabsorvidos pelas próprias raízes das mesmas árvores. Não há quase perdas! Os animais são importantes e delicados elos dessa teia de relações.

Por exemplo, veados-campeiros (Ozotocerus bezoarticus L.) atendem a diferentes funções ecológicas para a manutenção do equilíbrio em restritos espaços em reservas ambientais. O veado é um mamífero herbívoro (se alimenta somente de plantas) que serve de alimento para carnívoros como a onça. Desaparecendo o veado, elimina-se a onça. É possível visualizar a relação entre os seres vivos de uma mata? A extinção de um componente do sistema põe em risco todo o sistema. Hoje eles estão contidos numa lista de animais em vias de extinção. Muitas dessas lições deveriam servir de modelo para a agricultura, para as cidades e até para as vidas humanas.

Na Amazônia, há bons exemplos de relações do homem com a mata, retirando frutas e outros produtos para sua sobrevivência sem interferir negativamente no ambiente. Chico Mendes morreu nos mostrando a coerência desse fato. Mas no litoral brasileiro, onde havia uma das mais exuberantes paisagens da terra, a mata atlântica, à exceção de moradores tradicionais, não há muitas opções de convivência pacífica do homem “moderno” com ela. A fragilidade das estruturas vivas e de suas inter-relações não admite mais a presença desse moderno elemento.

Afinal quem transformou a mata em cafezais, em canaviais, em pastos? É isso que os movimentos ecológicos tentam transmitir. Às vezes, em vão. Com bons programas de educação ambiental, as crianças estão aprendendo nas escolas a importância e o respeito que se deve ter por qualquer ser vivo. E assim esse conhecimento se incorporará nos hábitos cotidianos e a vida selvagem poderá ter chances de se suceder e, com certeza, estar-se-á tangenciando um mundo melhor. Os surdos para assuntos ecológicos, ou seja, aqueles que não querem entender esses princípios básicos de funcionamento do planeta serão apenas parte da história. Uma história mórbida pelos acontecimentos nefastos. Hoje parece uma ilusão, mas assistir corriqueiramente veados correndo livremente pelas matas, ao invés de presos em cantos de zoológicos ou no espeto de churrasco de alguém que curte a luxuria de degustar a carne de um animal silvestre, poderá ser uma nova etapa evolutiva da consciência humana.

Carlos Eduardo Rossi
Pesquisador Científico do Instituto Biológico – Campinas (SP-Brasil)

artigo publicado pelo EcoDebate.com.br – 03/10/2007