Assentamento Pastorinhas: uma estrela guia, por Frei Gilvander Moreira
“As colunas da injustiça sei que só vão desabar quando o meu povo, sabendo que existe, souber achar dentro da vida o caminho que leva à libertação!” Thiago de Mello
[EcoDebate] Dia 22 de setembro de 2007, em um grupo de dez pessoas, visitamos o Assentamento Pastorinhas, um dos inúmeros locais onde a reforma agrária mostra sua beleza. Saímos de lá em estado de graça, convictos de que o reino de Deus está ali e que uma estrela guia brilha sobre e a partir daquelas pessoas. Por isso, queremos partilhar um pouco da beleza que vimos e experimentamos lá.
Há cinco anos atrás, 120 famílias de trabalhadores rurais sem-terra acamparam na beira de uma Fazenda de 156 hectares, área do condomínio da Família Menezes, no município de Brumadinho, região metropolitana de Belo Horizonte. Queriam ocupar a Fazenda que estava improdutiva, mas devido à Medida Provisória 2183/01, de FHC e mantida por Lula até hoje, não ocuparam a fazenda, porque tal MP proíbe vistoriar propriedades ocupadas por sem-terra. Eis um dos entraves autoritários e inconstitucionais que permanecem vigentes no Governo Lula.
Foram três anos debaixo da lona preta, “comendo poeira”, sofrendo pressões de poderosos da região. Foram despejados duas vezes. Ficaram no meio das voçorocas do Tejuco, provocadas pela mineradora MBR e no meio de pó do britador da Mineradora Vale do Rio Doce.
Cansados de esperar que o INCRA vistoriasse a Fazenda e a desapropriasse ou a comprasse, há dois anos atrás, já ligados ao MST, ocuparam a Fazenda que recebeu um nome: Assentamento Pastorinhas, em homenagem às mulheres que são, de fato, pastorinhas, “o bicho mais forte e resistente que existe”, diz uma assentada.
Hoje o Assentamento Pastorinhas constitui-se em uma comunidade de 20 famílias, oriundas de 12 municípios e de quatro estados diferentes da federação, o que configura uma grande diversidade cultural. As outras 100 famílias não agüentaram o tranco e acabaram desistindo. Foram seduzidas pelas ilusões e tentações da cidade grande. Hoje estão sobrevivendo nas favelas no meio da guerra civil (não declarada). Várias famílias se arrependeram de ter desistido da luta. Não seguiram o exemplo de Leila Maria Rodrigues, do Acampamento do MST Estrela dos Mártires, em Carmo da Mata/MG, que sempre diz, irradiando felicidade: “Enquanto existir uma lona preta e quatro bambus, estarei longe da burguesia e da violência urbana.”
Quando o então juiz da Vara Agrária, Renato Dresch, chegou para visitar a terra ocupada, as famílias já tinham plantado hortaliças nos 14 hectares que estavam, antes, com capim brachiara. Tudo em mutirão e trabalho coletivo. O juiz ficou sensibilizado e não autorizou a expulsão das famílias. O INCRA, pressionado pelo Movimento dos Sem Terra, comprou a fazenda e fez concessão de uso para as 20 famílias que, após cinco anos, se quiser adquirir a propriedade sobre a terra, deve começar a pagar o valor da mesma.
Ainda continuam sobrevivendo em barracos de lona preta, porque os únicos créditos que puderam acessar até agora foi o PSA de R$ 180,00 e o PEA de R$2.400,00 por família. O crédito habitação – 5 mil reais – está parado no Banco do Brasil, há um ano, por falta de licença ambiental do Instituto Estadual de Floresta – IEF. Alega a autarquia que não sabe qual é o bioma da região, se Mata Atlântica ou tipo de mata… (Revoltante é que para desflorestar para minerar não há o entrave do bioma para a Vale do Rio Doce!) Esse entrave acaba tornando mais dura a labuta dos/as trabalhadores/as e dos seus filhos/as. “Trabalhamos de 7 da manhã às 18 horas e ainda não podemos chegar em casa e tomar um banho quente por falta de uma casa e de energia”, desabafa Valéria, uma das lideranças do Assentamento, que fez o curso de Técnica Agrícola na Escola Helena Antipoff. Dona Helena, mulher judia que, após se refugiar no Brasil para fugir da fúria nazista, fez um extraordinário trabalho de resgate da dignidade humana na região de Brumadinho perpetua-se no trabalho das Valerias pastorinhas.
Quando lá chegaram, 142 hectares eram de mata fechada que continua intacta; os outros 14 hectares já estavam desmatados e usados só pela monocultura do capim. A única árvore frutífera que encontraram lá foi um pé de abacate. Acabou virando um monumento preservado pelos Sem Terra. A fazenda estava abandonada. Não cumpria sua função social. Hoje, já plantaram, entre outras frutas: amora, jabuticaba, acerola, maracujá, goiaba, pêssego, laranja, banana, manga, mexerica, tudo nas laterais das vias de trânsito, nos 14 hectares totalmente ocupados com verduras e legumes. Optaram por plantar à beira dos caminhos para não ter de desmatar mais. A mata fechada preservada abriga 16 colméias que produzem mel nas floradas do assa-peixe, do cipó São João e da copaíba que produzem um mel medicinal.
Se o INCRA não tivesse comprado a terra e repassado para os Sem Terra, provavelmente, a fúria infinita das mineradoras já estaria detonando o santuário ecológico que são os 142 hectares do Assentamento Pastorinhas.
“Se não mudarmos o modelo econômico, daqui a 15 anos a fome e a miséria vão assolar a região de Brumadinho, pois aqui só tem mineração para mais 15 anos. Enquanto tem mineração, há poucos empregos, assistência social para os excluídos e uma grande campanha publicitária das mineradoras que tentam convencer o povo que mineração é coisa boa, mas sabemos que minério só dá uma safra e que agricultura familiar, com adubação orgânica e agroecológica, em trabalho coletivo, conforme fazemos, é o que pode nos dar infinitas safras, pois lidamos com a terra considerando-a mãe, viva e sagrada”, alerta uma assentada.
“Nossos filhos estavam anêmicos, mas foi só começarem a comer os alimentos produzidos com adubação orgânica e agroecológica, graças a Deus, estão todos bem nutridos, o que é atestado pela Pastoral da Criança”, informa-nos, feliz da vida, uma outra assentada. Acrescenta, “a principal parceira que temos, hoje, é a Escola Balão Vermelho[1]. Tudo começou com o professor Edinaldimar Barbosa da Silva, professor de Geografia da Escola que já tinha experiência de trabalho com os indígenas Xacriabás. Estudantes e professores do Balão Vermelho vieram nos visitar. Viram um atravessador saindo com uma camionete lotada de verduras. Dissemos a eles que nosso sonho era organizar uma rede solidária, onde nós, pequenos produtores, pudéssemos vender diretamente para os consumidores sem ter que passar por atravessadores. Começamos a vender todas as segundas-feiras, das 10hs às 13:30hs na porta da Escola Balão Vermelho. Começamos atendendo 40 famílias e hoje já atendemos umas 120. Além de duas feiras livres, vendemos também para prefeitura de Contagem que distribui para creches e asilos. Estamos ampliando nossas parcerias.”
Há dois anos que as famílias do Pastorinhas não recebem mais nenhuma cesta básica e nem estão no bolsa família do governo Lula. Pelo contrário, doam verduras para creches, asilos e para as duas escolas onde as 30 crianças do assentamento estudam. Após irem a pé, na poeira sob o sol ou no barro sob chuva, com muita luta, conseguiram que a prefeitura enviasse um microônibus para levar as crianças para a escola que fica lá na cidade.
As 30 crianças do Assentamento estão fazendo a diferença nas duas escolas onde estudam. Ana Clara, 7 anos, sempre quando é questionada sobre o futuro, aprendeu com a vida a responder: “Quando eu crescer, quero ser Sem Terra como mamãe e papai. Aliás, já sou Sem Terrinha.” Maria Alice, que cursa quinta-série, disse que a professora lhe perguntou quem tinha descoberto o Brasil. Ela respondeu: “Foram os índios. Pedro Álvares Cabral explorou e escravizou.” Ela é uma líder da turma. Já conseguiu até organizar a turma para exigir a troca de uma professora que estava deixando muito a desejar.
Além de produzirem milho, feijão, arroz, mandioca, ovos e frango caipira, estão plantando mais de 30 variedades de hortaliças e legumes: inhame, chuchu, jiló, pepino, abobrinha, acelga, agrião, alecrim, alface de diversos tipos, alho poró, almeirão, beterraba, brócolis, cebolinha, cenoura, serralha, chicória, coentro, couve, couve-flor, espinafre, manjericão, mostarda, pimentão verde, quiabo, rabanete, repolho, rúcula, salsa, taioba, tomate cereja. Que diversidade! Tudo com adubação 100% orgânica e agroecológica. Mais: com trabalho coletivo e em um profundo espírito socialista.
O Assentamento Pastorinhas é “um oásis no meio do deserto”, pois de um lado, um fazendeiro, proprietário de Faculdade da região, passou tratores em cima da mata fechada e plantou capim. Derrubou a cerca que fazia a divisa com o assentamento e alegou para o IEF que a mata do assentamento Pastorinhas era reserva da fazenda dele. Diz ter seguido orientação da polícia para se livrar de uma grande multa. Um ano já se passou e ainda não refez a cerca. Do outro lado estão as voçorocas e as crateras deixadas pela MBR na mina do Tejuco. Os tratores e as escavadeiras da Cia Vale do Rio Doce roncam dia e noite em várias minas arrancando das entranhas da mãe terra o minério que é exportado pelo mesmo preço da água no mercado internacional. As mineradoras, liderada pela Cia Vale do Rio Doce, dizem ter concessão de lavra sobre quase todas as terras da região.
Depois de ver tudo isso, saímos com o desejo de responder “a todo os pulmão” àqueles que ainda dizem que a reforma agrária não dá certo. Quem ainda duvida, basta olhar do alto do Assentamento Pastorinhas. De um lado os empreendimentos capitalistas, que “prometem” gerar muitos empregos, mas deixa atrás de si uma enorme destruição e fecha as portas do futuro. Do outro lado, pessoas que criaram e estão tornando efetivas as oportunidades de trabalho e renda para vinte famílias, tornando-as cada vez mais comprometidas com a comunidade e com o futuro não apenas de seus filhos, mas os de todos, inclusive os filhos de pais de alto poder aquisitivo, que agora estão comendo alimento saudável. Comprometidas também com a preservação dos bens naturais, especialmente solo e água, e apostando em atividades que não dão uma safra só. Benditas todas as mãos que hoje semeiam e colhem naquele solo sagrado. Bem aventurados os que podem ver com os olhos e vêem uma forma de vida tão antiga e tão promissora nesses dias em que o anúncio de morte tem dominado a maioria dos espaços da metrópole.
Após horas de caminhada por entre as hortaliças e legumes, no almoço comunitário, feito com muito amor por “pastorinhas”, saboreamos a gostosura que nossos olhos já tinham contemplado. Inesquecível! Muito melhor que ler este texto é ir lá ver com os próprios olhos. Quem vê fica tão feliz que se torna parceiro. “Vinde e vede!”, gostava de dizer o camponês, filho do carpinteiro lá de Nazaré.
Frei Gilvander Luís Moreira, e-mail: gilvander@igrejadocarmo.com.br
Cf. também www.gilvander.org
Belo Horizonte, 23/09/2007, início da primavera.
[1] Situada na Av. Bandeirantes, 800, bairro Mangabeiras, CEP: 30.315-000, Belo Horizonte/MG, tel.: 031 3281-7799, fax.: 031 3223 4545, www.balaovermelho.com.br
Artigo publicado pelo EcoDebate.com.br – 27/09/2007
[1] Situada na Av. Bandeirantes, 800, bairro Mangabeiras, CEP: 30.315-000, Belo Horizonte/MG, tel.: 031 3281-7799, fax.: 031 3223 4545, www.balaovermelho.com.br