Águas penosas, por Paulo R. Haddad
O Brasil está comemorando dez anos da edição da Lei das Águas, com um balanço bastante favorável dos resultados obtidos
[O Estado de S.Paulo] Instalou-se o Conselho Nacional de Recursos Hídricos, criou-se a Agência Nacional de Águas (ANA), assim como a Secretaria de Recursos Hídricos (a atual SRHU) do Ministério do Meio Ambiente. Agregam-se a esse esforço a criação de 7 Comitês Nacionais de Bacias Hidrográficas e a instalação de 133 Comitês Estaduais. Em 2 desses Comitês Nacionais, já se dispõe de todos os instrumentos de gestão implantados.
E, principalmente, a SRHU e a ANA elaboraram, com intensa mobilização da sociedade brasileira, o Plano Nacional de Recursos Hídricos (PNRH), cuja implementação se estenderá até 2020. Mas, se muito se fez, muito mais precisará ser feito para colocar o uso sustentável de nossas bacias hidrográficas na agenda das prioridades nacionais de desenvolvimento.
Há, pelo menos, três dimensões a serem percorridas para que se avance na qualidade das políticas de recursos hídricos no país. Em primeiro lugar é preciso aperfeiçoar e fortalecer politicamente os mecanismos institucionais para a solução dos crescentes conflitos em torno da oferta e da qualidade dos recursos hídricos transfronteiriços.
A água é um recurso natural que gera uma interdependência entre produtores e consumidores das diferentes regiões de qualquer país. O uso alternativo dos recursos escassos de uma bacia hidrográfica interestadual forma um ambiente de tensões e conflitos entre os interesses regionais, sempre que os diversos agentes econômicos de cada região têm objetivos diferenciados (irrigação, consumo humano e animal, produção de energia, etc.) para a alocação dos recursos hídricos.
O exemplo mais recente dessas tensões está nos debates públicos intermináveis sobre o Projeto de Transposição do Rio São Francisco, uma bacia hidrográfica transfronteiriça interestadual.
No caso específico dos cursos de água transfronteiriços internacionais, as tensões e os conflitos tendem a se amplificar geometricamente, pois não existe nenhuma estrutura institucional que possa dirimi-los por meio de regulamentações impositivas, como no caso atual das controvérsias entre Brasil e Bolívia sobre a construção das hidrelétricas do Rio Madeira.
Em segundo lugar, há que se buscar soluções ousadas e com maior sentido de urgência para estancar o uso predatório e a degradação de nossas bacias hidrográficas.
Em se tratando dos recursos hídricos, destaca-se que estes padecem do que se denomina a tragédia dos comuns, que ilustra por que os recursos comuns são utilizados em excesso (ou são congestionados) e em ritmo maior do que seria desejável do ponto de vista das atuais e futuras gerações da sociedade.
Os recursos comuns (ar puro e água limpa, por exemplo), como todos os bens públicos, não são excludentes, ou seja, estão disponíveis gratuitamente para todos que quiserem usá-los com objetivos múltiplos (para consumo, para preservar etc.).
Entretanto, semelhantes aos bens privados, os recursos comuns são rivais: o uso de um recurso comum (a disponibilidade de um aqüífero, por exemplo) por um grupo de pessoas reduz as possibilidades de que outros grupos possam utilizá-lo.
Como conseqüência, dado o suprimento ou o fornecimento de um recurso comum, num intervalo maior ou menor de tempo, os formuladores de políticas públicas precisam se preocupar com a quantidade e a qualidade desse recurso.
Em terceiro lugar, seguindo os países com experiência superior a um século no manejo de ações regulatórias, é preciso ampliar o uso de mecanismos e instrumentos econômicos de mercado para viabilizar soluções para os problemas ambientais com menores custos de oportunidade para a sociedade brasileira.
Por meio de mecanismos e instrumentos de intervenção direta e indireta, o Poder Público poderá utilizar o sistema de preços relativos de mercado, visando estimular ou desestimular a produção e o consumo dos bens e serviços, de acordo com sua contribuição positiva ou negativa para o processo de desenvolvimento sustentável.
Enfim, há uma crise latente em torno de uma água de qualidade decrescente e de uma demanda em crescimento exponencial no país, que se exprime pela tragédia anunciada para o bem-estar das futuras gerações de brasileiros. Mas quem se importa?
Paulo R. Haddad é professor do Ibmec-MG e foi ministro do Planejamento e da Fazenda no governo Itamar.
(www.ecodebate.com.br) artigo publicado pelo O Estado de S.Paulo – 19/09/2007