Um retrato do Brasil, por Profa. Delze dos Santos Laureano; Frei Gilvander Luís Moreira; Prof. José Luiz Quadros de Magalhães
No dia 7 de setembro de 2007, na 13a edição do Grito dos Excluídos, em Belo Horizonte, após concentração na Praça da Liberdade, éramos cerca de 3 mil pessoas, entre excluídos, lideranças de pastorais sociais, de movimentos populares e pessoas que acreditam em um outro mundo melhor e possível.
Em marcha, com o objetivo de dar o Grito dos Excluídos na Praça da Estação, após descermos pela Av. João Pinheiro, na Praça Afonso Arinos, encontramos um paredão da Polícia Militar, com policiais fortemente armados. Atrás da PM, a uns 50 metros, na Av. Afonso Pena, acontecia o desfile oficial de 7 de setembro. Fomos proibidos de percorrer essa principal avenida de Belo Horizonte que tinha sido bloqueada pela PM para garantir a continuidade do desfile que mostra a grande mentira que foi a Independência do Brasil em 7/09/1822. Lado-a-lado, separados pela polícia, dois mundos: de um lado, o dos incluídos, os participantes do e no sistema econômico nacional. De outro lado, o mundo dos excluídos e de quem solidariamente luta ao lado deles. O mundo dos que lutam pelo reconhecimento dos direitos humanos e até dos direitos animais, já que estes continuam sendo negados aos seres humanos, como o direito de se alimentar, de morar e ter garantido a integridade física contra o abuso das autoridades e a truculência das empresas que controlam o aparelho do Estado.
A PM estava de frente para os excluídos e de costas para a turma do desfile oficial, sinal de que os excluídos, quando se organizam, são considerados perigosos e podem “jogar farinha no ventilador” das elites que sustentam dois Brasis no Brasil. Os soldados, quase todos jovens e negros, estavam ali, em grande parte, porque sem oportunidades de encontrar outros empregos, tiveram que aceitar ser policial como forma de sobrevivência e, inconscientemente, sustentam a “ordem” que perpetua progre$$o para uma minoria e a marginalização e desordem para a maioria. Pior, os policiais são pagos com dinheiro público, oriundo de impostos arrancados, prioritariamente, dos pobres e excluídos. Ali estava um triste retrato do Brasil.
Feliz será o dia em que um grande número de policiais resolverem encarar o mundo dos incluídos e, ao lado dos excluídos e dos movimentos populares, lutarem pela construção de uma sociedade sustentável com justiça e paz, inspirados por Jesus Cristo e seu evangelho. Inspirados também no sonho de Che Guevara, no tenentismo que revelou o Brasil miserável e tantas lideranças como Luiz Carlos Prestes, Lamarca, Carlos Marighela, torturados e assassinados pelo golpe militar de 31/03/1964.
É hora de ouvirmos o arcebispo Dom Oscar Romero. Dia 24 de março de 1980, antes de ser covardemente assassinado, por estar ao lado do povo oprimido que lutava contra a ditadura militar implantada em El Salvador a mando do imperialismo dos Estados Unidos, em plena celebração eucarística, Romero deixou-nos palavras de fogo: “Agora, eu gostaria de fazer um apelo especialmente aos homens do Exército e concretamente às bases da Guarda nacional, da Polícia e dos quartéis. Irmãos, vocês são parte de nosso povo e estão matando seus irmãos camponeses. Acima de uma ordem de matar dada por um homem, deve prevalecer a lei de Deus, que diz: “Não Matar!” Nenhum soldado é obrigado a obedecer uma ordem que vá contra a lei de Deus. Ninguém é obrigado a cumprir uma lei imoral. Já é tempo de vocês recuperarem suas consciências. Obedeçam em primeiro lugar a sua consciência e não à ordem do pecado… Em nome de Deus e em nome deste sofrido povo, cujos lamentos sobem cada dia mais angustiados até o céu, suplico-lhes, rogo-lhes, ordeno-lhes em nome de Deus: cessem a repressão !”
Em nosso país conquistamos uma “Constituição cidadã” onde diversos direitos estão inscritos. Entre estes direitos, diversos direitos humanos como liberdade, educação, saúde, moradia, dignidade para todos. Entre estes direitos encontramos o direito à segurança como direito fundamental, como direito de cada cidadão brasileiro. Esta compreensão nos mostra que após 1988 o Estado deve estar a serviço do povo. Não podem os agentes de segurança pública (a polícia) retirar a liberdade, comprometer a vida e a integridade física e moral das pessoas em nome da propriedade e da liberdade de alguns. Este tempo de um direito para poucos, de um Estado que protege o privilégio de alguns em detrimento do direito de todos já acabou em nossa Constituição escrita, mas, não acabou na nossa realidade.
Recordando as palavras do arcebispo Dom Oscar Romero, devemos lembrar diariamente a todos os ocupantes de funções públicas – sejam policiais, juízes, deputados, senadores, promotores de justiça, professores, médicos, enfermeiros e qualquer outra função – que o Estado tem de oferecer oportunidades e dignidade para todos, inclusive a garantia do exercício da cidadania. Nada legitima a exclusão e a miséria, nada legitima a opressão. Não há escolha seja na lei de Deus, seja na lei de uma sociedade democrática, que possa defender incondicionalmente a propriedade. Nada vale uma vida. E vida deve ser digna e respeitada. A garantia da vida exige a prestação de serviços pelo Estado que propiciem vida com qualidade.
Muitas histórias podem ser contadas de como pessoas, enganadas, são levadas a defender interesses que não são os seus, que não são de interesse de seus pais, de seus filhos e seus irmãos. Por que na história poucos oprimem muitos? Porque, em vários momentos da história, muitos de nós defendemos ardentemente interesses que não são os nossos, que são contra os nossos interesses mais legítimos, contra os interesses e direitos de nossos pais e irmãos? Por que muitos defendem privilégios de poucos, privilégios estes que podem quando muito observar ao ver numa revista fotos em que nunca poderá figurar? Por que muitas vezes nos tornamos cães de guarda de um sistema que nos oprime? Talvez a resposta esteja na capacidade dos que detém o poder econômico de nos encobrir o real, de esconder os reais interesses e jogos de poder que estão por detrás das aparências. Compreendido isto a solução está na revelação do real, na busca da verdade. Precisamos construir possibilidades de revelação do real, na revelação da contradição presente nas ações de muitos agentes públicos que defendem uma ordem que não é a deles, e hoje não é mesmo nem a ordem da Constituição.
No norte do Paraná, em 1988, dona Maria e seu esposo estavam em uma ocupação dos Sem Terra. De repente, chega a polícia com a Ordem de Despejo, dada por um Juiz de Direito, e inicia sumariamente a expulsar os Sem Terra. Dona Maria foi agarrada por trás quando tentava escapar da polícia. Ao olhar para trás para ver quem lhe segurava, teve a infeliz surpresa de ver que estava sendo agredida por seu próprio filho policial. Dona Maria ferveu o sangue de indignação, pegou o filho pelo colarinho e começou a desabafar: “Meu filho, foi para isto que eu te carreguei no ventre 9 meses? Foi para isto que eu te amamentei no meu colo por 2 anos? Foi para isto que eu e seu pai trabalhamos como escravos para te criar? Você não tem vergonha, meu filho, de estar reprimindo seus próprios pais e irmãos? Você também é explorado, meu filho. Pelo amor de Deus, deixe de ser pelego! Você sabe o que significa ser pelego? Pelego é aquele que mama nos de cima – opressores – e pisa nos de baixo – irmãos, companheiros -, entre os quais estão seu pai e eu, sua mãe…”
O filho soldado, perplexo, ouvia a mãe, mas ficou imóvel. O filho perdeu as forças e ficou paralisado. Não podia mover-se para nenhum lugar. Este acontecimento contagiou a todos. Os Sem Terra triplicaram sua indignação e renovaram a determinação de não abandonar aquela propriedade rural que não cumpria sua função social. Começaram a gritar em coro: “Você aí fardado, também é explorado. Venha cá para o nosso lado!” Os policiais, chocados com a cena, ficaram comovidos e desistiram de continuar o despejo. Em uma fração de segundo, muitos policiais descobriram o real, a consciência de classe. Perceberam que estavam sendo traidores dos seus próprios irmãos e companheiros. De repente muitos que, inconscientemente, sempre diziam sim aos seus algozes, aprenderam a dizer não. Nasciam ali novos sujeitos históricos para a luta social com consciência de classe. Era a escola da Vida e da luta pintando um novo retrato do Brasil.
Delze dos Santos Laureano, e-mail: delzesantos@hotmail.com
Frei Gilvander Moreira, e-mail: gilvander@igrejadocarmo.com.br
Prof José Luiz Quadros de Magalhães, e-mail: ceede@uol.com.br
Belo Horizonte, 09/09/2007.
publicado pelo EcoDebate.com.br – 12/09/2007