Justiça Ambiental: A Grande Crise Encoberta, por Rodrigo Gonçalves de Souza
Adital – Atualmente, o problema com o aquecimento global tem sido vigente na agenda de discussões públicas. A divulgação do estudo do painel da ONU tornou insustentável a estratégia retórica dos agentes plutocratas em desqualificar a discussão da crise ecológica mundial, atribuindo aos ambientalistas a pecha de “ecochatos”, como é de praxe na revista Veja, por exemplo.
O lado negativo tem sido o esquecimento de outros problemas de gravidade ainda mais proeminente, como a crise de escassez de água e fósforo, ainda com os fatores de conflitos geopolíticos e socioambientais embutidos.
E este segundo fator mencionado merece um destaque em nossa reflexão. Pois há uma crise ecológica que se arrasta desde os primórdios da emergência do capitalismo histórico, uma crise que advém de mecanismos inerentes a esse; e, por isso mesmo, usufrui de todo empenho para que seja obnublada por parte dos pró-capitalistas, da racionalidade do “acumular, acumular, assim manda a lei e os profetas”.
Dentro da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro em 1992, a Convenção da Biodiversidade reconhece “a estreita e tradicional dependência de recursos biológicos de muitas comunidades locais e populações indígenas com estilos de vida tradicionais”. (…) “é desejável repartir eqüitativamente os benefícios derivados da utilização do conhecimento tradicional, de inovações e de práticas relevantes à conservação da diversidade biológica e à utilização de seus componentes”.
No Brasil, já havia uma antecipação desse entendimento na Constituição Democrática de 1988; que, em seu artigo 225 (Tít. VIII, Cap. VI), estabelece que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
Dada essa abordagem, era de se esperar que a Justiça Ambiental fosse um tema mais recorrente. Mas isso é travado pelos poderosos grupos econômicos que capturam o Estado brasileiro e são, diretamente, interessados em abafar essa temática, para tirar de questão a justiciabilidade e exigibilidade por parte dos grupos sociais afetados. Soa como um diagnóstico o pensamento esboçado por Schattschneider, de que “Aquele que determina os assuntos da política, dirige o país, porque a definição das alternativas significa a escolha dos conflitos e a escolha dos conflitos aloca poder”.
A conceitualização da Justiça Ambiental foi primeiramente empreendida e publicizada nos Estados Unidos pelos movimentos dos Direitos Civis. O movimento incluira em sua pauta a denúncia contra a injustiça sofrida pelas comunidades afrodescendentes por servirem de bodes expiatórios para a externalização de custos ecológicos, sendo, em sua territorialidade, sistematicamente mais expostos aos riscos e danos ambientais, a tecnologias e procedimentos de alto risco, dejetos, falta de saneamento, à base de discriminações institucionais.
De acordo com essa realidade e vivência, os princípios embutidos na Justiça Ambiental ganharam dimensão política universalizada no seu contato com as lutas de grupos sociais em todo o mundo. No Brasil, país quinto pior lugar na distribuição de renda mundial, e com desigualdades regionais em grau semelhante, essa questão entremeia todos diversas tensões sociais. À Questão da violência urbana e estigmatização das favelas, desde as políticas sanitaristas no RJ que promoveu um grande apartheid social, à política de espoliação de comunidades rurais nos anos 70 pelo Programa “Florestal”. No relatório de “Direito ao Meio Ambiente” da Plataforma Brasileira de Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais, levantado por Jean-Pierre Leroy, visualiza-se através das grilagens de terras, explorações predatórias de madeiras, garimpo, latifúndios de soja, pecuária, destruição da floresta nativa, encurralados por eucaliptos, invasão e exploração de territórios indígenas, carcinocultura (criação de camarões), mineração, biopirataria, empreendimentos hidrelétricos, etc. Exemplos de casos, podem ser citados envolvendo a Aracruz Celulose no Espírito Santo, Bahia-Sul na Bahia; Acesita, Valourec & Mannesmmann e outras, em Minas Gerais; Rhodia, Companhia Mercantil e Industrial INGÁ na Cidade dos Meninos; Pilar no município de Duque de Caxias; Shell no município de Paulínea, SP; Solvay Indupa do Brasil no município de Santo André, SP; os conflitos na Terra do Meio e os rios Xingu e Iriri (afluente do Xingu), etc. Emblemática a questão de Tucuruí, onde há localidades sem energia elétrica, convivendo com a rede que abastece empresas de eletrointensivos para exportação, cujo conflito ganhou os grandes noticiários, sempre prontos a criminalizar movimentos sociais.
Em 2001, a Rede Brasileira de Justiça Ambiental, formada por mais de cinqüenta organizações (sindicatos de trabalhadores, ONGs, entidades ambientalistas, movimentos de afrodescendetes e ameríndios, pesquisadores universitários, e movimentos sociais diversos) formalizaram a Carta de Princípios, na qual consta o entendimento de Justiça Ambiental, sendo o conjunto de princípios e práticas que:
a) asseguram que nenhum grupo social -étnico, racial ou de classe-, suporte uma parcela desproporcional das conseqüências ambientais negativas de operações econômicas, de decisões de políticas e de programas federais, estaduais, locais, assim como da ausência ou omissão de tais políticas.
b) asseguram o acesso justo e eqüitativo, direto e indireto, aos recursos ambientais do país;
c) asseguram acesso justo às informações relevantes sobre o uso dos recursos ambientais e a destinação de rejeitos e localização de fontes de riscos ambientais, bem como processos democráticos e participativos na definição de políticas, planos, programas e projetos que lhes dizem respeito;
d) favorecem a constituição de sujeitos coletivos de direitos, movimentos sociais e organizações populares para serem protagonistas na construção de modelos alternativos de desenvolvimento, que assegurem a democratização do acesso aos recursos ambientais e a sustentabilidade de seu uso;
Ironicamente, essa temática deveria ser suscitada principalmente pelo atual governo federal, ou pelo menos tendo o debate puxado e polemizado pelo partido do presidente da república, cujo programa falava em 2002 “O governo Lula trabalhará para um novo padrão de desenvolvimento com crescimento econômico, inclusão social e justiça ambiental, de modo que, resguardando o direito das gerações futuras, todos tenham acesso justo aos recursos naturais”.
Hoje, não somente os diagnósticos de injustiça ambiental se mantêm, como o governo sinaliza que vai encampar a luta a favor de diversos protagonistas dessas violações de direitos, que são também financiadores de campanhas eleitorais. Vide a flexibilização para com as madeireiras e pecuaristas extensivos no Pará, a soja derrubando centenas de hectares da Amazônia por dia, o presidente ter se referido aos usineiros de cana como os “novos heróis”, vide a manipulação de números da reforma agrária, usando recontagens de projetos já existentes (o governo na verdade realizou cerca de 150.000 novos assentamentos de reforma agrária desde o início de seu mandato). A forma como vem se referindo ao processo de licenciamento ambiental, com uma postura que nunca ousaria tomar em relação ao COPOM, por exemplo.
Outros indicadores do quadro de injustiça ambiental no Brasil, destacando o papel proativo do Estado, mostrando que a tese de Raimundo Faoro, sobre “Os Donos do Poder”, continua vigorando:
– A principal instituição de fomento, o BNDES, que possui um orçamento 20% superior ao do Banco Mundial, em dez anos – 1997/2006, de um total de desembolso de R$ 312 bilhões, apenas R$ 1,9 bilhões em saúde (e serviço social), R$ 1,5 bilhões em educação e R$ 687,5 milhões em saneamento.
– Os brasileiros e brasileiras pagam uma das tarifas mais caras do mundo (a quinta maior – R$ 430,00/MWh), enquanto transnacionais recebem energia subsidiada (R$ 45,00 a R$ 70,00/MWh).
– Dados cadastrais do Incra, relativos a 1998 (últimos disponíveis), apontavam que os minifúndios e as chamadas pequenas propriedades rurais (imóveis com área total até 4 módulos rurais) totalizavam 3.183.055 imóveis (88,7% do total), detendo 92,1 milhões de hectares (22,2% da área total cadastrada). Enquanto isso, as chamadas grandes propriedades (imóveis com área superior a 15 módulos) totalizavam 104.744 propriedades (2,9% do total de imóveis) concentrando 238,3 milhões de hectares (57,3% da área cadastrada). Os produtivos somam 45 mil imóveis com uma área total de 72 milhões de hectares, enquanto que os não-produtivos correspondem a 59,8 mil imóveis, concentrando o total de 166,3 milhões de hectares.
– Manipula-se a questão complexa do semi-árido nordestino e a carência d’água para tentar legitimar um projeto de Transposição do São Francisco que destina 70% da água para agricultura irrigada, 26% para uso dos grandes centros urbanos e apenas os 4% restantes para o uso difuso, ou seja, para a população isolada e dispersa.
– A Unicef estima que 120 mil pessoas extraem seu sustento de lixões no Brasil.
– Sobre os Desertos Verdes de Eucaliptos: Ação do Cartel do Deserto Verde: http://informadordeopiniao.blogspot.com/2007/07/ao-do-cartel-do-deserto-verde.html
Não é de se admirar que essa problemática não conste na pauta dos “formadores de opinião”. Não incitam movimentos “cívicos” pela Justiça Ambiental, também, não há como fingir que se tem uma solução pronta com o nome de “reformas modernizadoras”. Nesta “questão ambiental”, não há como desvirtuá-la com o chavão do momento, “o mercado resolve”.
“Quanta verdade suporta, quanta verdade ousa um espírito? Essa se tornou para mim a autêntica escala de aferição de valor”. Friedrich Nietzsche
Recomendamos: www.justicaambiental.org.br
http://informadordeopiniao.blogspot.com
Rodrigo Gonçalves de Souza – Engenheiro agrônomo, assessor técnico do Centro de Assessoria aos Movimentos Populares do Vale do Jequitinhonha – CAMPO VALE. Ponto Focal da ASA para a temática do Combate à Desertificação em Minas Gerais
(www.ecodebate.com.br) artigo originalmente publicado pela Agência de Informação Frei Tito para a América Latina