Uma nova comunhão entre homens e animais, por Marcelo Barros
Adital – Uma das revistas semanais de maior circulação no Brasil traz uma reportagem sobre Hiasl e Rosi, casal de chimpanzés que mora na Suíça, vê televisão, adora documentários sobre animais selvagens e está reivindicando direitos iguais aos seus primos humanos com os quais os dois têm em comum quase 99% do código genético (Época, 25/06/2007, p. 68).
Na busca de uma sociedade mais justa, organizam-se grupos comprometidos com a justiça e a paz. Ao mesmo tempo, cada pessoa desenvolve, em si mesma, a capacidade da compaixão, isto é, do “sentir com”. Conforme o Budismo, a bondade consiste em ir além de sua própria identidade e ser capaz de ver a vida e o mundo a partir do outro. Este outro é o ser humano com o qual convivemos, é o desconhecido que mora na China e são também os outros seres vivos com os quais compartilhamos o planeta Terra, como membros da mesma comunidade da Vida.
Muita gente cria animais domésticos. Desde épocas em que o Ibama não proibia domesticar animais silvestres, os nordestinos costumam criar passarinhos. Entretanto, a maioria ignora como a sociedade trata os animais destinados à pesquisa médica e ao consumo. A ciência, criada para salvar a vida não respeita os mínimos direitos inerentes à sensibilidade dos animais. Em muitos centros de pesquisa, macacos, coelhos e ratos são dissecados em vida para se ver como o organismo reage, ou para pesquisas, que poderiam ser feitas de outro modo. Nos laboratórios, há animais obrigados a viver com um só pé ou uma só asa, com tubos permanentes no esôfago, ou provando drogas desconhecidas, para que os laboratórios saibam suas reações. Macacos têm arrancado um pedaço do seu couro cabeludo e da sua pele para testar uma nova pomada. Alunos examinam vísceras de animais vivos. E por questão de economia, o macaco que tem suas vísceras tiradas do corpo e expostas em ambiente externo deve ser mantido vivo para a próxima aula. Esta crueldade ainda é maior com os animais destinados ao comércio alimentar.
Há mais de três anos, o jornal Le Monde Diplomatique denunciou: “A França está cheia de campos de concentração e salas de tortura indignas de nosso tempo”. Referia-se às granjas de criação intensiva que se tornaram verdadeiras prisões de animais. Criaturas que, por natureza, nasceram para viver no espaço livre e na luz, são mantidas em ambientes escuros, ou iluminados artificialmente, apenas para produzir mais rápido ou para engordar e ir para os frigoríficos. Na Europa, milhões de galinhas poedeiras têm seu bico quebrado com ferro em brasa e, por toda a vida, são encarceradas em cubículos onde não podem dormir, nem se mover, nem estender as suas asas. São obrigadas a comer quase sem parar um alimento saído de fossas sépticas. São engordadas artificialmente a um ponto que seus ossos não suportam o peso e elas não podem se levantar. Têm permanentemente um tubo enfiado no esôfago, através do qual, uma máquina empurra no seu estômago três quilos de ração, equivalentes a 15 quilos de comida para um estômago humano. Patos e gansos vivem imobilizados com canais enfiados no estômago. Como tudo é industrial, no matadouro os animais são esquartejados ainda com vida, porque é mais barato e eficiente.
Bezerros de 145 quilos são mantidos em caixas de 0,81 m, para comer e se preparar para o matadouro. Para preparar baby beaf, quebram-se as pernas do bezerro assim que ele nasce para impedir que se formem músculos e estrias. O animal é colocado em um cavalete onde fica imobilizado, recebendo leite por um tubo para engordar e ser morto aos quinze dias.
A ONU adverte que 8500 espécies de vertebrados estão ameaçadas de extinção pela crueldade humana. Apesar de que as religiões mais antigas pregam o vegetarianismo, desde muito antigamente, os seres humanos se alimentam de animais. Entretanto, nas sociedades tradicionais, mesmo se sacrificado na caça ou abatido no comércio local, o animal era tratado com dignidade e não como mera mercadoria. Até hoje, algumas tribos indígenas, antes de ir à caça, invocam o Espírito dos animais para que estes lhes mostrem quais caititus ou antas estão no tempo de serem sacrificados. Nos terreiros de Candomblé, os animais destinados aos sacrifícios são tratados com reverência e recebem comida especial. Se comem, é sinal de que aceitam ser sacrificados. Se não comem, são imediatamente libertados. Na cultura tibetana, quase todos são vegetarianos. Entretanto, quem desejar pode comer carne, contanto que seja de animais muito velhos, ou mortos em acidentes.
Recentemente, alguns têm chamado a atenção para o especismo que consiste em atribuir uma diferença essencial entre a espécie humana e outras espécies com as quais temos ancestrais comuns. Talvez, um dia, o especismo venha a ser superado, como procuramos superar o racismo, o machismo e o escravismo.
Grupos ecológicos e espirituais traduzem em prática a compaixão e o respeito pela vida, através de uma opção pelo vegetarianismo. Ao evitar o consumo de carnes, além do sofrimento dos animais, evitam o desperdício de água e de proteínas vegetais. Diminuem o desmatamento e protegem a biodiversidade. Ao provocarem a diminuição do rebanho bovino provocarão também a redução do metano – poderoso agente do efeito estufa.
A postura individual vegetariana não mudará a realidade se não for acompanhada de uma militância cultural e política por uma relação nova entre a humanidade e os animais. Mesmo os que não queiram aderir totalmente ao vegetarianismo podem lutar por um tratamento menos cruel com os animais destinados ao abate e os que produzem leite, ovos e outros produtos.
Já em sua época, Claude Lévi Strauss escreveu: “O homem ocidental não compreende que, arrogando-se o direito de separar radicalmente a humanidade da animalidade e dando a um o que tira do outro, abre um círculo maldito. Em alguns aspectos da sociedade, as fronteiras da desumanidade foram recuando, mas o princípio de explorar o outro em benefício próprio permanece. A única esperança que temos de, algum dia, quando alguém achar necessário, nós mesmos não sermos tratados como animais por nossos semelhantes é que cada ser humano se reconheça como sofredor e se solidarize com a dor de todos os outros seres vivos”.
Marcelo Barros, Monge beneditino, teólogo e escritor. Tem 30 livros publicados.
(www.ecodebate.com.br) artigo originalmente publicado pela Agência de Informação Frei Tito para a América Latina