Os escravos do etanol, por Gabriel de Salles
[Gazeta Mercantil] São poucos os textos históricos isentos sobre os fundamentos econômicos da escravidão no Brasil e dos envolvidos nessa cadeia, desde os caçadores de escravos em terras africanas, seu transporte, até o porto, os navios negreiros, intermediários em terras brasileiras e, finalmente, os fazendeiros que os adquiriam. Como a operação toda não era barata, o negro escravizado tornava-se um bem de alto valor, que ficou mais valioso ainda após as leis do Ventre Livre e do Sexagenário, libertando os filhos de escravos nascidos após a promulgação da lei e os negros com mais de 60 anos. Fazendeiros mais atentos para a equação custo/benefício sabiam que o escravo devia produzir bem para proporcionar retorno ao capital investido. E, para produzir, precisava ser saudável.
Essa preocupação puramente econômica deu origem a uma situação curiosa na qual a saúde do negro escravizado acabava recebendo boa assistência de alguns proprietários, semelhante à proporcionada à elite. Tal preocupação está, por exemplo, na base da origem das santas casas de misericórdia.
Passados quase 120 anos após o fim da escravidão, tem-se a impressão de que nem mesmo a relação custo/benefício levada em conta por fazendeiros de mais de um século atrás é considerada por alguns empresários do agronegócio. É a conclusão a que se chega quando surgem notícias como a divulgada dia 3 deste mês, relatando a libertação pelo Grupo Móvel de Combate ao Trabalho Escravo de 1.108 cortadores de cana mantidos em condições degradantes em uma propriedade da empresa Pagrisa, em Ulianópolis, no Pará. A ação do grupo formado por fiscais e procuradores do Ministério do Trabalho, com o apoio da Polícia Federal, resultou no maior resgate de trabalhadores escravos no País.
De acordo com os relatos, os resgatados encontravam-se alojados em cômodos fétidos, alimentavam-se de comida estragada, e muitos estavam desidratados. A higiene pessoal era feita numa lagoa que recebia também o esgoto da propriedade. Controlada por uma tradicional família de agropecuaristas de Catanduva, oeste paulista, a empresa é a maior produtora de etanol do Pará.
Apenas dois dias após a libertação dos trabalhadores, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva afirmava perante líderes da União Européia, em Bruxelas, que a cana-de-açúcar não se desenvolve bem no clima amazônico e, portanto, a região seria preservada do seu plantio. Deduz-se, portanto, que o Pará não pertence à Amazônia e, além disso, que o resto do País tem o aval presidencial para sofrer as agressões ambientais causadas pela cana-de-açúcar.
Além do equívoco geográfico, o presidente omitiu-se em relação às condições de trabalho nos canaviais, ignorando ações saneadoras praticadas por funcionários de dois de seus ministérios. Com esse comportamento, fica difícil para o etanol brasileiro conquistar potenciais consumidores, como os europeus. E pode dar um bom motivo para que seja ressuscitada, inclusive no plano internacional, a campanha abolicionista do tempo do Império.
(www.ecodebate.com.br) artigo originalmente publicado pela Gazeta Mercantil – 13/07/2007