A transposição do Rio São Francisco e a produção de álcool no Brasil, artigo de Adriano Espíndola Cavalheiro
Apesar das promessas presidenciais em sentido contrário – principalmente
no sentido de realizar um maior debate com a sociedade organizada acerca
do polêmico projeto da transposição do Rio São Francisco, quando da greve
de fome do Bispo Dom Luiz Flávio Cáppio – o governo Lula, através do
Ibama, assinou, no último dia 23 de março, licença ambiental para o
projeto de transposição. Neste mesmo mês, lançou edital de licitação para
a primeira fase da obra.
Conforme já denunciando em artigo no qual sou autor [1], a verdade é que
nem mesmo houve tempo suficiente para uma discussão acerca dos impactos
ambientais, entendendo-se meio ambiente no sentido mais amplo da palavra,
como a própria Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6.938/1981)
determina.
Não é mera coincidência que, ao mesmo tempo em que o governo dá o sinal
verde para essa obra, que longe de resolver os problemas que afligem a
população pobre nordestina pode causar impactos ambientais gravíssimos,
são negociados acordos comerciais, através dos quais o Brasil pode assumir
o papel de principal fornecedor dos chamados biocombustíveis, mormente de
etanol, para as principais potências do planeta.
Voltando a destacar os sérios problemas que a transposição pode trazer,
citamos, entre outros, a possibilidade real e concreta de interferência
nas populações indígenas, aumento e aparecimento de novas doenças, visto
que a água é um excelente vetor; perda de terras potencialmente
agricultáveis; desapropriações e todos conflitos que decorrem desta;
especulação imobiliária nas várzeas potencialmente irrigáveis no entorno
dos canais; interferência com o patrimônio cultural das populações
atingidas; perda e fragmentação de áreas com vegetação nativa, de habitats
e ecossistemas; modificação da composição e risco de redução da
biodiversidade das comunidades biológicas aquáticas nativas das bacias
receptoras; risco de introdução de espécies invasoras; maior número de
ocorrência de acidentes com animais peçonhentos; aceleração do processo
erosivo e de carreamento de sedimentos; modificação no Regime Fluvial do
Rio São Francisco; eutrofização dos novos reservatórios.
Ademais, como boa parte dos rios brasileiros, pelos descasos da maioria
absoluta dos governantes das três esferas (municipal, estadual e federal),
que nunca se preocuparam realmente com a questão ambiental, o Rio São
Francisco está com sua saúde extremamente comprometida.
Como denuncia Luiz Flávio Cappio, o bispo de Barra desprezado por Lula, em
recente artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, dos 5.400km de
margens do Rio São Francisco, apenas 5% das matas ciliares estão
preservadas. Cappio afirma, ainda, que numa caminhada por ele realizada
“da nascente à foz do rio, de outubro de 1992 a outubro de 1993, foram
detectados todos os tipos de agressão, como a destruição das fontes, a
morte das lagoas e dos brejos e o desmatamento das matas ciliares que
protegem os barrancos. O assoreamento é cada vez maior, com queda dos
barrancos e poluição das águas pelos dejetos sanitários das cidades, pelos
dejetos químicos das indústrias e pelos agrotóxicos de grandes projetos de
irrigação”.
Mas nada disso interessa, pois como dizem os coronéis nordestinos, os
latifundiários, ou melhor, os “agrobusines”, ou seja, essa gente que vem
lucrando com a expansão de cultura da cana, não se pode obstar o
progresso. No caso em discussão, isso significa mais e mais áreas para o
cultivo da principal matéria-prima, no Brasil, do combustível
equivocadamente chamado de “ecologicamente correto”.
Para entender bem a situação que estamos enfrentando, é preciso destacar
que, para o agronegócio, essa gente que em sua maioria não se importa com
nada para garantir seus lucros (refiro-me aos velhos, mas não abandonados,
métodos dos latifundiários), está colocada uma oportunidade, diga-se de
passagem, de ouro, que dificilmente será perdida, pois as principais
potências econômicas, as maiores responsáveis pela degradação do meio
ambiente – em especial Estados Unidos, União Européria e Japão – têm como
meta substituir, nos próximos treze anos, no mínimo, 20% de seu consumo de
combustíveis derivados de petróleo pelo chamado biocombustível.
Vejam que, de acordo com projeções de entidades patronais do setor, o
número de usinas de etanol deve crescer 30% no país em apenas cinco anos –
pulando das atuais 248 para 325 unidades de produção na safra de
2012/2013. Dados fornecidos pelo Banco Nacional de Desenvolvimento
Econômico e Social (BNDES) apontam pedidos de financiamento no valor de
R$7,2 bilhões. O total de investimentos para a construção de novas usinas
está estimado em R$ 12,2 bilhões. Caso tais previsões se confirmem, a área
ocupada pela cana crescerá mais de 50%, chegando a quase 10 milhões de
hectares em meados da próxima década.
Como apontado em artigo publicado por Marcos Rogério de Souza, mestre em
Direito pela Unesp e advogado em Brasília (DF) “o problema é que a cana, a
soja e o eucalipto são produzidos em regime de extensas monoculturas com
sérios impactos negativos. Desde as plantations até as grandes
propriedades do agronegócio, os efeitos são os mesmos e têm se
intensificado nos últimos anos: desmatamento ilegal para dar lugar ao
plantio de cana, soja e eucalipto; aumento da violência no campo
decorrente da expulsão de camponeses e posseiros; ampliação da
concentração fundiária; multiplicação do uso de agrotóxicos e demais
agroquímicos, prejudicando a saúde humana e o ecossistema; pobreza rural e
urbana, decorrente do êxodo e da baixa incorporação de trabalho; aumento
das importações de produtos historicamente produzidos pelo Brasil, como
arroz, trigo, cebola, batata, feijão. Importante considerar que o
desmatamento é uma das principais causas do efeito estufa, conforme
demonstrou relatório da ONU divulgado recentemente”.
Não restam dúvidas, portanto, que a transposição do rio São Francisco está
inserida neste contexto de geopolítica internacional e é mais um destes
projetos, que a despeito do discurso oficial, servem para beneficiar as
elites de sempre.
Novamente, citando Dom Cáppio, “o projeto de transposição do rio São
Francisco desrespeita a realidade ao considerarmos que o rio está em
franco processo de morte. Trata-se de um projeto altamente agressor,
ecologicamente e socialmente injusto. Ao invés de levar as águas do rio
para o povo e garantir a vida da fauna e da flora, o projeto prioriza
grandes projetos agroindustriais, privilegiando pequeno grupo em
detrimento da grande massa que continuará sem acesso à água. É socialmente
injusto e ecologicamente agressivo”.
Além do impacto ambiental produzido pela própria obra, teremos ainda
aqueles acima decorrentes da monocultura latifundiária do agronegócio,
causados entre outros, no caso do cultivo da cana-de-açúcar, pelo uso da
grande quantidade de agrotóxicos durante todo ciclo de cultura, do uso de
vinhoto (rejeito industrial da cana altamente poluente) para adubação do
solo e das queimadas para a colheita, sendo que tanto a cultura da cana
como a do eucalipto aceleram o processo de desertificação, uma vez que
absorvem demasiadas quantidades de água do solo e subsolo.
Como bem observou Éden Pereira Magalhães, Secretário executivo do Conselho
Indigenista Missionário (Cimi), em entrevista publicada no Portal do PSTU
“o compromisso que Lula assumiu após a greve de fome de Dom Cáppio, de
abrir o diálogo real, não foi assumido apenas com o bispo, mas com a
sociedade brasileira. E é este compromisso que o governo optou por
ignorar”.
Mas se Lula tem, faz algum tempo, ignorado os compromissos feitos com a
sociedade organizada, junto a qual construiu sua história, é porque
considera os usineiros de cana (mas também os banqueiros e os grandes
industriais, para sermos justos) seus novos heróis e estes, como bem
observou um dos bilionários do álcool do mundo, consideram, Lula, um
grande amigo a qual todos (os usineiros) devem gratidão.
Mais do que nunca está nas mãos das entidades dos trabalhadores e dos
movimentos sociais organizados a tarefa de barrar este projeto de
transposição que, se efetivado poderá causar impactos de grande monta ao
clima e à saúde de nosso planeta.
ADRIANO ESPÍNDOLA CAVALHEIRO
in www.EcoDebate.com.br – 26/06/2007
enviado por João Suassuna, colaborador e articulista do EcoDebate