A propósito das indefinições da geração de energia hidráulica no Nordeste brasileiro, por João Suassuna
[EcoDebate] A questão elétrica do Brasil pode ser assim resumida: a matriz energética nacional é calcada preferencialmente na geração hidráulica (aproximadamente 80% do que é gerado provêm de hidrelétricas); existe um potencial hidrelétrico a ser explorado de cerca de 260 GW; atualmente o país dispõe de uma potência elétrica instalada de cerca de 97 GW e seus principais sistemas de geração estão interligados. O governo federal traçou a sua meta de crescimento em cerca de 5% do PIB, percentual este que irá necessitar de uma injeção anual de cerca de 5 GW, na potência instalada no país.
Com relação à geração elétrica no rio São Francisco, a sua bacia é dotada de um potencial hidrelétrico estimado em cerca de 26,3 GW, dos quais 10,3 GW estão sendo operados nas usinas hidrelétricas da Chesf.
O grande problema que vislumbramos nas questões da geração de energia do Nordeste é que o São Francisco (responsável por mais de 95% da energia gerada na região) é um rio de múltiplos e conflituosos usos, situação esta agravada pelas características climáticas e geológicas da região, onde, em parte do seu curso, o rio corre em geologia cristalina (a rocha que dá origem ao solo está praticamente à superfície, chegando a aflorar em alguns pontos), resultando disso a intermitência de seus afluentes. Essas características têm influenciado de forma marcante a vazão média do rio (2.800 m³/s), o que tem resultado em problemas nos diversos usos a que é submetido. Além do mais, o rio tem um potencial de áreas irrigáveis importante (estimado em cerca de 1 milhão de ha em suas margens), do qual já foram explorados cerca de 340 mil ha (e essa área tende a crescer 4% ao ano), fato este agravado, ainda, pela ocorrência de períodos de secas na bacia, a exemplo do que ocorreu no qüinqüênio 1999 – 2003, período no qual a represa de Sobradinho, construída para regularizar a vazão do rio, acumulou, no ano de 2001, apenas 5% do seu volume útil. Naquele ano houve a necessidade de se racionar energia para o sistema elétrico não entrar em colapso.
Na nossa ótica, o rio já está operando no seu limite, e, portanto, não há a mínima possibilidade de ofertar volumes para outros fins. No entanto, existem discordâncias ao nosso posicionamento por parte de alguns técnicos da Chesf. Para eles, o exemplo da retirada volumétrica de até 127 m³/s, previstos no projeto da transposição do rio São Francisco, para o atendimento do agronegócio, não afetará em nada a geração de energia elétrica do Nordeste.
Esse posicionamento da Chesf foi recentemente questionado por Célio Bermann, ao escrever o capítulo Impasses e controvérsias da hidreletricidade, no Dossiê de Energia da USP (vol 21 nº 59 jan/abr 2007), o qual tratou da complementação da motorização do sistema elétrico do complexo Chesf. No referido capítulo ele menciona o seguinte:
“A Usina de Xingó foi projetada para abrigar dez turbinas de 500 MW, de forma a possuir uma capacidade instalada total de 5.000 MW. Entretanto, atualmente apenas seis turbinas estão instaladas. Trata-se, portanto, de 2.000 MW que poderiam ser acrescentados se as outras quatro turbinas previstas fossem instaladas. A Usina de Itaparica também apresenta condições semelhantes. Projetada inicialmente com dez turbinas de 250 MW, ela conta atualmente com apenas seis turbinas, perfazendo 1.500 MW. Outros 1.000 MW poderiam ser acrescentados se as turbinas fossem instaladas.
Com respeito às duas usinas no Rio São Francisco, continua Bermann, a Companhia Hidrelétrica do São Francisco (Chesf) alega que houve um superdimensionamento nos dois projetos e que não existe água suficiente (grifo nosso) para efetivar a complementação da motorização de ambas”.
Ora, para nós que militamos nessas questões há mais de uma década fica evidente que uma gota de água que se retire a montante das represas da Chesf, nas condições relatadas por Bermann, irá fazer a diferença. Como dissemos anteriormente, o rio possui múltiplos e conflituosos usos e, portanto, já houve prioridade, tanto para gerar energia, como para irrigar a sua bacia hidrográfica. Para nós ficam claras as conseqüências de serem retirados até 127 m³/s de um rio cujos volumes já não são suficientes para complementar a motorização de duas das principais hidrelétricas nordestinas, conforme afirmado pelo Bermann.
Além do mais, o governo federal insiste em afirmar que a interligação do sistema elétrico é a solução para satisfazer as demandas energéticas e possibilitar o crescimento da nação. Ora, em 2001 quando racionávamos nossa energia no Nordeste, a usina de Tucuruí, localizada na região norte, a qual enviava bons volumes de energia para a Chesf, também racionava sua energia em 20%. Nesse sentido torna-se temerário afirmar que a interligação do sistema elétrico é a solução para os nossos problemas de geração. Ao contrário do que se afirma, basta haver um descompasso na caída das chuvas no território nacional – como acontecido em 2001 – para que tenhamos problemas na nossa geração. Embora com o sistema elétrico interligado, existe uma grande possibilidade de não termos acumulação volumétrica suficiente em nossas principais hidrelétricas, que garanta a geração da nossa energia e, portanto, o desenvolvimento do país.
Em março de 2001, editamos o artigo “Em Rumo ao Desmantelo”, no qual fizemos uma análise realística da precária situação em que se encontrava o setor elétrico nordestino, motivada, naquela época, por um período hidrológico desfavorável na região. Numa ocasião em que não se falava em racionamento de energia, já escrevíamos sobre os apagões. E eles aconteceram.
Fernando Henrique Cardoso passou para a nossa história como o presidente do “apagão”. Inimaginável acreditar que sua excelência tenha dito ao povo brasileiro, em cadeia televisiva, que havia sido pego de surpresa quando o apagão caiu no seu colo ao final de seu mandato. Prova inequívoca da incompetência de seu ministério de Minas e Energia que, dentre outras funções, tinha o dever de manter o presidente informado da real situação energética do país.
O que preocupa é que o governo Lula se encontra longe de alcançar a meta necessária de adicionar, por ano, 5 GW na potência instalada do país. Ele sabe disso e não é por outra razão que está querendo, a todo custo, o licenciamento ambiental para a construção das hidrelétricas do rio Madeira na região norte, as quais, junto com a usina de Belo Monte, estão prometendo uma geração firme de cerca de 7 GW.
Em dezembro de 2006, publicamos o artigo intitulado “O Meio Ambiente do País Pede Socorro”, no qual tratamos dessas questões, afirmando que o Ibama, no intervalo de três anos – entre 2003 e 2006 -, havia concedido licenciamento ambiental para a construção de 21 hidrelétricas, perfazendo um total adicional, na potência elétrica instalada do país, de 5,4 GW, ou seja, valor quase três vezes menor do que aquele necessário para a satisfação do seu crescimento, de 15 GW em três anos.
Com esses números fica fácil de perceber que o país continua seguindo na rota da escuridão. Com a mensagem transmitida ao povo brasileiro pelo presidente da república, segundo a qual os apagões eram páginas viradas na história do país, o não cumprimento da meta estabelecida vem-se traduzindo em um alerta, o que deixa, de certa forma, o governo em situação delicada perante a sociedade brasileira. Nesse sentido, o governo passou a enxergar a construção das hidrelétricas na região norte como de fundamental importância para a garantia do crescimento do país.
O que seria mais lógico: finalizar a motorização das usinas da Chesf (Itaparica e Xingó) que já têm o espaço físico pronto nas represas, para a instalação das oito turbinas projetadas e, com isso, gerar potência elétrica adicional equivalente ao que foi projetado no Madeira, ou construir as usinas nessa região, com os problemas ambientais que estão atualmente em curso? Esta pergunta, de certa forma, já foi respondida por Bermann, no Dossiê de Energia da USP: optou-se pela construção das unidades do Madeira pelo simples fato de o rio São Francisco não dispor de água suficiente para gerar energia com as oito turbinas projetadas e não instaladas, nas usinas de Itaparica e Xingó.
Fica clara a existência de nítida diferença no tratamento das questões energéticas quando comparados os governos de Fernando Henrique Cardoso e o de Lula. Ao contrário do que ocorreu no governo FHC, o governo Lula deu provas de estar inteirado de tudo aquilo que vem ocorrendo no setor elétrico do país e, diga-se de passagem, está-se empenhando, ao máximo, para a promoção do seu desenvolvimento.
Apenas achamos que a vontade política de iniciar a obras da transposição no próximo dia 25 de junho (o exército brasileiro já se encontra acampado em Cabrobó [PE] para iniciar a construção dos canais de aproximação), com toda a polêmica existente no projeto, poderá fazer com que Lula passe para a história como o presidente do “desmantelo hidrológico”, conforme preconizado no nosso artigo escrito em 2001, em tons de profecia.
Finalmente, torcemos para que sejam restabelecidas as negociações entre o governo federal e a sociedade civil organizada com relação às questões sanfranciscanas. Cremos que ainda há tempo de contar com essas discussões, para revertermos o quadro de abandono em que se encontra a região semi-árida nordestina e, principalmente, a situação de colapso energético que se avizinha. Os movimentos sociais precisam começar a participar ativamente desse processo e o descaso do governo federal em contar com essa discussão não faz parte da solução do problema.
Recife, 11 de junho de 2007.
João Suassuna – Engº Agrônomo e Pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco
in www.EcoDebate.com.br – 12/06/2007