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Artigo

A história às vezes se repete. E piora, artigo de Washington Novaes

É possível economizar mais de 30% da energia consumida neste momento no país e ainda ganhar mais com repotenciação de usinas e redução de perdas nas linhas de transmissão a longa distância

[O Estado de S.Paulo] A intenção era voltar hoje ao tema da energia nuclear, dada a insistência com que ele retorna ao noticiário, trazido por seus defensores, mas deixando de lado grandes questões que têm de ser consideradas:

1) É uma forma de energia mais cara que outras disponíveis no Brasil e não renovável.

2) É considerada insegura, com riscos altos (tanto que a Alemanha e outros países a estão abandonando).

3) Não se encontrou, em nenhum país, solução definitiva para o lixo nuclear, que permanece dramaticamente perigoso durante séculos; Angra 1 e Angra 2 mesmo continuam a armazenar seu lixo nuclear em piscinas dentro das usinas, porque não conseguem dar outra destinação – quem aceitaria esses resíduos por perto?

4) Segundo vários estudos, o Brasil não precisa neste momento implantar novas usinas para adequar a oferta de energia.

Mas o autor destas linhas não pode fazer de conta que não leu o artigo assinado pelo professor Jerson Kelman na edição do último dia 2 neste jornal, sob o título Licenciamento ambiental e interesse nacional (A2).

Nele o diretor-geral da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) afirma que este escriba, no artigo Onde está de fato a nossa riqueza (18/5), “não leu e não gostou” de sua proposta de retirar do Ibama a atribuição de licenciar ou não empreendimentos hidrelétricos. Na sua opinião, o artigo aqui publicado aderiu ao “linchamento virtual” de sua tese.

Não é possível deixar passar em branco tais afirmações. De fato, houve uma imprecisão no que se comentou aqui, com base no noticiário dos jornais e num abaixo-assinado de ONGs: não propõe o diretor-geral da Aneel que o licenciamento, depois de aprovado pelo Conselho de Defesa Nacional, passe pelo Congresso.

Nem isso: propõe que o Ibama perca todo o poder de conceder ou não licença ao projeto e faça apenas o estudo de impacto ambiental; que o Conselho de Defesa Nacional – em que o ministro do Meio Ambiente nem sequer tem assento permanente; pode ser convocado – decida se o “projeto energético” é “de interesse nacional”; e, se assim decidir, já o inclua nos leilões para venda de energia.

A justificação é que esse caminho “livra os dirigentes e técnicos de entidades de licenciamento ambiental da ameaça de processo judicial por decisões administrativas” (o que eles não estão pedindo, nem nunca pediram).

Também por esse novo formato seria possível “incluir as dimensões econômica e energética no processo”, já que “não é razoável esperar que o Ibama tenha competência para avaliar os trade-offs entre vantagens e desvantagens medidas em quatro escalas – ambiental, social, econômica e energética”.

Sendo assim, “por se tratar de processo eminentemente político, e não técnico, é preciso tirar do órgão ambiental a palavra final”. E se entrega toda a decisão a um órgão político em que o governo federal tem controle absoluto.

É interessante. Vinte e um anos depois de entrar em vigor a Resolução nº 1, de 1986, do Conselho Nacional do Meio Ambiente, sobre licenciamentos; depois de ali aprovadas centenas de projetos na área de energia (alguns deles severamente criticados por “ambientalistas”, que queriam rejeitá-los), descobre-se que falta ao Ibama essa competência.

Exatamente no momento em que o órgão pede mais estudos para liberar projetos de mega-hidrelétricas na Amazônia que o governo federal quer a qualquer custo implantar, desprezando vários estudos que mostram a desnecessidade de ampliar a oferta de energia – como prova, por exemplo, a Universidade de Campinas no seu Estudo de Cenários para redução de impactos econômicos, ambientais e sociais no setor elétrico brasileiro (2006): é possível economizar mais de 30% da energia consumida neste momento no país e ainda ganhar mais com repotenciação de usinas e redução de perdas nas linhas de transmissão a longa distância.

Só nessa hora se “descobre” que o Ibama não tem essa capacidade. Não basta havê-lo fatiado em dois. É preciso cassar-lhe o poder de licenciar (ou não).

Mas não é a primeira vez que o diretor-geral da Aneel tenta concentrar no Executivo federal poderes que deveriam caber a outras esferas.

Quando se discutia o projeto da Política Nacional de Recursos Hídricos (que viria a ser a Lei 9.433/97), o jurista Paulo Affonso Leme Machado e o autor destas linhas foram chamados pelo professor Kelman, que coordenava o projeto, porque haviam criticado alguns pontos:

a) Conferia-se ao Executivo federal, sozinho, maioria absoluta na composição do Conselho Nacional de Recursos Hídricos (CNRH) – o que punha em risco o princípio federativo;

b) não continha nenhum dispositivo que impedisse o Executivo de contingenciar recursos recolhidos aos cofres públicos sob a forma de pagamento pelo uso da água e que deveriam ser destinados exclusivamente aos comitês de gestão das bacias hidrográficas;

c) não estabelecia que o pagamento pelo uso da água aos comitês de gestão não estava incluído nos pagamentos de hidrelétricas a municípios, como compensação pela inundação de parte de seus territórios.

Nenhuma dessas ponderações foi acolhida no projeto. Algumas conseqüências:

1) Foi com essa maioria absoluta no Conselho Nacional de Recursos Hídricos que o governo federal conseguiu ali aprovar o polêmico projeto de transposição de águas do Rio São Francisco, mandando para a lata de lixo a decisão do comitê de gestão da bacia desse rio, que por 44 votos a 2 se manifestara contra o projeto (e, por tabela, o CNRH esmagou também o princípio federativo);

2) as hidrelétricas consideram a indenização pela inundação como pagamento pelo uso da água;

3) o Tesouro Nacional tem contingenciado recursos advindos do pagamento das hidrelétricas em valor maior que o orçamento da Agência Nacional de Águas liberado em 2006.

Às vezes a história se repete. Para pior.

(www.ecodebate.com.br) artigo originalmente publicado pelo O Estado de S.Paulo – 08/06/2007