Agroenergia e segurança alimentar: compromisso da FAO, por José Graziano da Silva
[Valor Econômico] Queiramos ou não, a transição energética e a luta contra a fome fundiram-se na América Latina e Caribe numa mesma engrenagem, impulsionadas por uma daquelas urgências que a história coloca em nosso caminho, sem pedir licença. É o caso da corrida contra o tempo para evitar que a temperatura média da Terra oscile acima de 2º C neste século. A agroenergia é uma das alternativas à disposição. Não para inaugurar um novo Oriente Médio na região, ou homologar o consumo obsceno de alguns mercados ricos como temem alguns, mas para substituir uma percentagem mínima de combustíveis fósseis num amplo leque de iniciativas, em busca de uma nova matriz energética sustentável. Etanol e biodiesel são as alternativas disponíveis para serem misturados de 5 a 25% aos derivados do petróleo e ajudar na redução da poluição atmosférica, principalmente nos grandes centros urbanos da América Latina.
Os biocombustíveis líquidos demandam atualmente apenas 14 milhões de hectares em todo o mundo e oferecem em troca 1% do abastecimento mundial de energia para transporte. Para atender a meta mais ambiciosa de 25%, estima-se que 20% das terras agricultáveis teriam que ser destinadas a essa finalidade. Mas essa área poderia diminuir significativamente com as inovações tecnológicas em curso, principalmente o advento comercial do etanol da celulose, atualmente em fase de pesquisa experimental. Vale dizer que hoje praticamente metade (49%) dos temas agricultáveis do mundo não são cultivadas ou são utilizadas como pastagens naturais extensivas.
O Comitê Mundial de Segurança Alimentar (CSA) da FAO, reunido em Roma este mês, incluiu em seu relatório (ftp://ftp.fao.org/docrep/fao/meeting/011/J9455e.pdf) constatações que desautorizam um possível confronto entre agroenergia e segurança alimentar. A primeira delas informa que a produção mundial de cereais alcançou quase dois bilhões de toneladas em 2006, quantia suficiente para assegurar 2.810 Kg calorias/dia a cada habitante do planeta. Na América Latina e Caribe a disponibilidade de alimentos é ainda maior: 2.880 Kg calorias/per capita, quase um terço superior aos 2.200 Kg calorias necessárias ao suprimento mínimo de energia aos seres humanos. E a disponibilidade nessa região vem crescendo num ritmo superior à média mundial.
A segunda constatação é até mais promissora: no grupo de países de renda mais baixa e com déficit crônico de alimentos, a oferta de cereais aumentou consideravelmente, reduzindo a necessidade de importações e ajuda humanitária. Em apenas 34 países ainda ocorre o que a FAO denomina de “emergência alimentar”, característica da incapacidade de assegurar o abastecimento da população com recursos próprios. Quase todos eles convivem com situações de conflito armado ou desastres naturais.
Tudo converge para a constatação de que a capacidade produtiva potencial no século XXI excede, de longe, o consumo necessário. A fome, em nosso tempo, tem cada vez menos a ver com a produção e cada vez mais com as desigualdades no acesso aos alimentos. É isso que explica que um bilhão de seres humanos – 20% da população mundial – continue a enfrentar condições de pobreza extrema, e o que é mais grave: um em cada quatro deles na América Latina, principal região produtora de alimentos do planeta. Hoje, a proporção de pessoas nessas condições já é maior em nosso continente do que na Ásia Oriental e Oceania, só ficando atrás da África.
O relatório da FAO não deixa muito espaço para projeções neomalthusianas que associam a fome à falta de terras ou de capacidade produtiva ante a “ameaça” da agroenergia. Nossa doença é social e não aritmética – pode e deve ser superada pela ação política. Essa certeza move a “Iniciativa América Latina e Caribe Sem Fome”, que orienta as nossas ações na região, um dos celeiros mais férteis do planeta. Mas onde ainda subsistem 52,4 milhões de desnutridos e 209 milhões de pobres (40% da população total), ao lado de terras aráveis suficientes para permitir a agricultura saltar dos atuais 150 milhões de hectares para 224 milhões de hectares, passando de 16% para 23% da área disponível, sem derrubar nenhuma árvore. Até porque as modernas tecnologias, para evitar monoculturas e o consequente esgotamento da fertilidade dos solos, recomendam o plantio intercalado ou em rotação dos alimentos. É por isso que o plantio de mamona para biodiesel no Nordeste fez aumentar a produção de feijão, assim como a rotação de culturas praticada na renovação dos canaviais em São Paulo fez crescer a produção de grãos. Aliás, essa sempre foi a tradição dos agricultores familiares na Europa e nas colônias americanas: a cultura comercial para venda subsidia a produção de subsistência, numa simbiose que combate a pobreza e a fome no mesmo chão.
Muitos países que sofrem de emergência alimentar convivem com situações de conflito armado ou desastres naturais
Plantar combustíveis pode ajudar a corrigir essas distorções que fazem a abundância conviver com a miséria, especialmente no campo, onde os apelos da exclusão são mais urgentes. Compartilhamos esse entusiasmo sem desconhecer os desafios que ele encerra.
Trata-se de uma possibilidade histórica. Não de uma certeza arrogante. Para que ela se materialize, a FAO considera indispensável um conjunto de ações que pretende difundir junto aos governos de todo o continente, associando a luta contra a fome a um conjunto de salvaguardas indissociáveis dos programas regionais de agroenergia: zoneamento rural para impedir que a agroenergia desaloje lavouras destinadas à alimentação humana; aperfeiçoamento dos contratos ao longo da cadeia produtiva; garantia dos direitos sociais, especialmente direitos trabalhistas, no campo; expansão da pesquisa e assistência técnica e do cooperativismo, de modo a garantir a participação dos pequenos produtores também na geração de agroenergia, e não apenas como ofertante de matérias-primas.
Não se pode atribuir à agroenergia a origem de desequilíbrios sociais e ambientais que já marcam dramaticamente a vida em nosso tempo, e podem se agravar se nada for feito de imediato para mitigar-los. E que atingirá mais duramente as populações pobres que habitam áreas vulneráveis e sem infra-estrutura. Mais de um bilhão e quinhentas mil pessoas vivem, ainda hoje, sem energia elétrica no mundo. Dois bilhões e quinhentos milhões dependem de sistemas tradicionais de agroenergia para dar conta de atividades tão simples quanto cozinhar o almoço ou o jantar. Lenha e carvão vegetal ardem em todo o planeta na dura rotina de vida de um terço da humanidade.
Visto dessa ótica, o desenvolvimento da agroenergia abre possibilidades que não devem ser menosprezadas, embora envolvam riscos. O documento do Conselho Mundial de Segurança Alimentar da FAO é esclarecedor nesse sentido, quando alerta também para a delicada questão do uso de alimentos para fins energéticos. Em 2006, os preços do milho atingiram cotações recordes em decorrência da especulação desenfreada com as metas do etanol nos Estados Unidos. A legislação americana previa uma mescla de 5% em substituição a um aditivo até 2012, sendo a oferta projetada mais que suficiente para atender a essa demanda. No seu discurso sobre o “Estado da União”, no entanto, o presidente Bush elevou intempestivamente a participação do etanol para 15% em 2017, empurrando a demanda prevista para 132,5 bilhões de litros – sete vezes a oferta atual de milho para fins energéticos. O resultado imediato foi uma forte alta de preços no mercado internacional, uma vez que os EUA são os maiores exportadores dessa commodity. Há quem explique que essas especulações – e as crises de abastecimento que elas precipitam, a exemplo do que ocorreu no México – como uma estratégia deliberada para lubrificar a liberação do milho transgênico nos países da América Central, onde as importações são muito importantes.
Especulações à parte, não se pode atribuir à agroenergia a paternidade de desequilíbrios sociais – particularmente de fome – que também não depende exclusivamente dela para ser erradicada, mas sim de uma política mundial de segurança alimentar que preserve as necessidades humanas em primeiro lugar. Voltamos assim às escolhas da história. Uma transição de ciclo de desenvolvimento como a que nos deparamos, antes de ser uma equação técnica, é uma palheta de opções de diferentes tonalidades políticas. Requer forte indução de planejamento e políticas públicas para materializar suas promessas e minimizar seus riscos. Uma boa forma de influenciar a nova paisagem é disseminar diretrizes e ações de Estado que permitam plantar combustíveis no presente para colher justiça social no futuro. Esse é o compromisso da FAO.
José Graziano da Silva é representante regional da FAO para América Latina e Caribe.
(www.ecodebate.com.br) artigo originalmente publicado pelo Valor Econômico – 29/05/2007