Meio Ambiente: a conta que não foi feita, por João Suassuna
[EcoDebate] Existe hoje no país um fato curioso. Quando não se quer que um determinado assunto prospere, ou quando os resultados de uma discussão não satisfazem as expectativas da sociedade brasileira, criam-se comissões. No nosso cotidiano, são vários os exemplos que mostram essa realidade e, não raro, têm envergonhado o povo brasileiro.
Quem não lembra das ações da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) criada para investigar o mensalão e que acabaram não chegando aos resultados esperados pela nação? Simplesmente, a grande maioria dos envolvidos naquele caso foi inocentada e, o que é pior, continua legislando.
Na esfera do executivo isso não é diferente. Estamos diante da criação do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, dentro do próprio Ibama, órgão este que atuará no licenciamento ambiental dos projetos de hidrelétricas na região amazônica. Idealizado pela ministra Marina Silva para satisfazer as exigências do governo federal, quanto ao licenciamento ambiental das obras contidas no Plano de Aceleração do Crescimento do país (PAC), esse instituto já está sendo alvo de severas críticas, por ser considerado desnecessário, tendo em vista a sua atuação ir de encontro às ações que são de responsabilidade do próprio corpo técnico do Ibama. Esta ambigüidade de ações resultou em uma greve de grandes proporções no órgão e a criação daquele Instituto está-nos parecendo um ato cujos resultados tendem a ser inócuos. Se essa moda pega na esfera do executivo, é de se supor que para o tratamento de assuntos relacionados à desertificação do Nordeste o Ibama seja orientado a criar o Instituto Vasconcelos Sobrinho (ecólogo pernambucano que primeiro denunciou a formação de desertos no Nordeste), cujo desempenho também será duvidoso. É viver para crer.
Na nossa ótica, o corpo técnico do Ibama tem toda a razão de estar desgostoso com a instituição, tendo em vista a existência de competência técnica interna para assumir e dar conta das questões ambientais do país, sem a necessidade de serem criados esses apêndices. Afirmamos isso por experiência própria, pois iniciamos a nossa carreira profissional no Ibama, isso em meados da década de 70 do século passado, quando o órgão ainda era denominado Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF). Recordamo-nos do interesse e da preocupação da instituição em capacitar seus técnicos, levando sempre em consideração o binômio desenvolvimento versus custo ecológico. Tanto é assim, que nos foram possibilitados cursos de pós-graduação em Planejamento Florestal na Fundação Getúlio Vargas (FGV), no Rio de Janeiro, e em nossa monografia, exigida na conclusão do curso, tratamos dessas questões. Fizemos também mestrado em Botânica, na Universidade Federal Rural de Pernambuco, com tese voltada para questões ecológicas, especificamente na sucessão florestal de espécies nativas com fins econômicos. Portanto, ao longo de todos esses anos, sempre acreditamos na capacitação técnica do atual Ibama, instituição que merece todo o nosso respeito e pela qual temos a maior admiração.
Faz sentido colocarmos aqui essas questões, tendo em vista o atual dilema vivenciado pelo Ministério do Meio Ambiente na implementação do PAC, qual seja, o de proporcionar o desenvolvimento do país com o menor custo ecológico possível.
O fato preocupante é que o Ibama é um órgão de governo e, como tal, deve cumprir a lei e não a vontade do chefe da nação.
Militante nas questões ambientais há muitos anos, a ministra Marina vive momentos difíceis em sua pasta, principalmente ao defender a transposição do rio São Francisco – projeto que consta do PAC -, por julgar suas ações ambientalmente seguras. Como conceder o licenciamento ambiental a um projeto polêmico, tecnicamente deficiente e ambientalmente impactante, sem que o mesmo seja precedido de uma ampla e profunda discussão junto a sociedade?
As hidrelétricas do rio Madeira que irão alagar uma extensa área com rica biodiversidade na região amazônica são outro bom exemplo que precisa ser discutido com a participação da sociedade.
Nesse sentido, ao cursarmos a pós-graduação na FGV no final da década de 70, mantivemos conversas com o botânico Murça-Pires, do Instituto de Pesquisas Agropecuárias do Norte, em Belém (PA), sobre a existência de florestas naturais de bambu na Amazônia, coincidentemente localizadas bem próximas à região onde serão construídas as hidrelétricas no rio Madeira. Espécie do gênero Guadua, de ocorrência rara no país, indicadora de solos férteis, chegou a ser reconhecida por imagens de satélite, por apresentar expressiva área de coloração diferenciada, quando comparada à coloração da floresta pluvial local. Pôr em risco essa raridade botânica ainda pouco estudada, sem haver uma avaliação técnica mais cuidadosa e sem a participação da sociedade é, no mínimo, um ato de agressão ao nosso patrimônio natural.
Nas questões da transposição do rio São Francisco, a ministra já deu depoimentos favoráveis ao projeto, por entender que o mesmo não apresenta problemas técnicos, sendo, portanto, ambientalmente seguro. Ora, como acreditar na excelência técnica de um projeto demasiadamente caro, quando o rio a ser transposto já deu sinais de debilidade hídrica no ano de 2001, obrigando o governo federal a proceder ao racionamento de energia? Caso já existisse o projeto de transposição naquele ano, como ficaria a população que seria abastecida com as águas do Velho Chico, cujos volumes já eram insuficientes para garantir a geração e o pronto atendimento da demanda energética dos nordestinos? Nesse cenário, será que a ministra acredita piamente que esse rio tenha condições de abastecer 12 milhões de pessoas na região setentrional nordestina, sem antes pôr em risco todos os investimentos havidos ao longo da sua bacia? Apenas para lembrarmos aos leitores: só no setor elétrico nordestino foram investidos cerca de US$ 13 bilhões. Energia é sinônimo de desenvolvimento e não podemos estar brincando com isso.
A prioridade de uso das águas do São Francisco para o abastecimento humano é outro assunto que merece reflexão. Entendemos que o maior opositor do projeto de transposição é o próprio governo federal, ao editar recentemente, pela Agência Nacional de Águas (ANA), o Atlas Nordeste de abastecimento urbano, trabalho este que mostra, claramente, que é possível abastecer, com as águas que já existem na região nordeste, um número três vezes maior de pessoas, com a metade dos recursos previstos no projeto da transposição, ou seja, até o ano de 2010 serão gastos na transposição R$ 6,6 bilhões para o abastecimento de 12 milhões de pessoas, período no qual se prevê, no Atlas, um gasto de 3,3 bilhões para o benefício de cerca de 34 milhões de pessoas. Com essa informação, é de se supor que o problema de nossas autoridades passa, também, por deficiência matemática.
Exemplos como esses têm-se mostrado constantes no nosso cotidiano, o que tem tornado cada vez mais evidente a assertiva de que a vontade política está sempre acima das possibilidades técnicas de se realizar as ações de desenvolvimento no país. O governo Lula não pode abrir mão da importância de se discutir essas questões junto ao setor técnico, valendo-se inclusive da participação da sociedade como um todo, sob pena de estar pondo em risco a governabilidade do país.
É preciso entender, antes de tudo, que uma hidrelétrica construída na bacia do rio Madeira ou em qualquer outra bacia da região Norte, por estar localizada numa área de planície, estará sempre sujeita a fortes inundações, com claras interferências na biota local. A pergunta que fica no ar é a seguinte: como proceder ao tratamento dessas áreas, no país e no exterior (estima-se que uma área significativa da Bolívia seja inundada pela construção dessas hidrelétricas), mantendo-se a sustentabilidade ambiental local, com baixo custo ecológico e, principalmente, evitando a extinção de espécies de animais e plantas, e tratando adequadamente os sedimentos acumulados no interior das represas? Essas questões têm preocupado o governo federal, ao ponto de ter-se engasgado recentemente com a espinha de um bagre do Madeira e se atolado na lama dos seus sedimentos. Neste contexto o país segue na rota da escuridão, e já se comenta a possibilidade da construção de usinas termonucleares como alternativa para minimizar o problema elétrico que se avizinha.
Finalmente, entendemos que não pode haver desenvolvimento sem custo ecológico, por menor que seja. A participação técnica nestes casos se mostra importantíssima, pois cabe a ele, técnico, envidar esforços no sentido de minimizar tanto quanto possível esses problemas. Essa é a nossa função. Portanto vamos à luta.
Recife, 21 de maio de 2007.
João Suassuna – Engº Agrônomo e Pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco
In www.EcoDebate.com.br – 22/05/2007