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Transposição: para quê e para quem? Por Ruben Siqueira

[EcoDebate] Passamos quase 500 anos ouvindo falar em seca no Nordeste. O quadro pintado, nos discursos, na música, na literatura, mostrava chão gretado, lata d’água na cabeça, carro-pipa, menino buchudo chorando… O que se via e se ouvia era sobre sede e fome, migração, gastos públicos, região maldita… E tome preconceito contra os nordestinos! Afinal, a necessária mão-de-obra barata não pode mesmo ter o valor que merece!

Não faz muito tempo, começamos a desmontar esse discurso e construir uma nova visão e um novo jeito de lidar com o sertão. Aprendemos como é e como funciona a natureza do que passamos a chamar semi-árido. Esse conhecimento demonstra que aí é possível viver, e bem, com os recursos suficientes que o semi-árido tem, sabendo se prevenir para o período seco aproveitando do que oferece o período chuvoso.

Experiências e propostas nesta linha foram desenvolvidas e multiplicadas em todo o sertão nordestino por muitas entidades e pessoas. Quase todas ligadas ao PT e à construção de uma alternativa popular de poder e de exercício do poder político no Nordeste e no Brasil. Por isso, foi com grande surpresa e decepção que recebemos a decisão do Governo Lula em concretizar o antigo projeto de transposição de águas do rio São Francisco para o Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba e o Pernambuco.

Por que a surpresa e a decepção? Primeiro, porque a obra da transposição vai no sentido contrário ao da convivência com o semi-árido. Ela parte da antiga idéia de que não há água suficiente nessa região para que ela se desenvolva e é preciso trazer de fora. Não se questiona que desenvolvimento é esse, a quem interessa, qual o seu custo e quem vai pagar a conta. E sabemos que, num absurdo contra-senso, a água se destina a grandes usos econômicos intensivos em água: irrigação de frutas para exportação, criação de camarão, siderurgia… Terá um custo altíssimo: pode chegar a 0,40 centavos de real o metro cúbico, quando em Juazeiro e Petrolina hoje custa 0,030 centavos. Quem vai pagar é o povo, na conta de água, pelo sistema de “subsídio cruzado”.

Segundo, porque se busca justificar a transposição de águas do São Francisco com o argumento de que é para matar a sede de12 milhões de pessoas e isso não é verdade. O próprio projeto admite que 70% da água serão para irrigação, 26% para usos urbanos e industriais e 4% apenas para a população das caatingas. Essa população de 12 milhões é dita como quem vai se beneficiar porque é ela quem vai pagar o custo da água bruta e da operação do sistema de água do Nordeste. A transposição vai privatizar e transformar a água no melhor negócio do Nordeste.

Terceiro, porque o projeto despreza a situação crítica do rio São Francisco. Os estudos de impacto ambiental, obrigatório por lei, não foram feitos na bacia toda do São Francisco, apenas nos locais de captação. O programa de revitalização, que o governo se viu obrigado a elaborar, funciona na prática como moeda de troca para que a transposição seja aceita na bacia doadora e, ao contrário do que diz, está se pautando na mesma lógica de mais degradação ao invés de verdadeira revitalização. O novo Ministro da Integração, o baiano Geddel Lima, tem atuado nesse sentido, comprando apoios na bacia, barganhando com água para comunidades ribeirinhas e conclusão de projetos empresariais parados.

Têm propostas alternativas? Para um desenvolvimento sustentável, voltado para o bem de todos, da pessoa humana e da natureza, existem propostas suficientes. A ANA – Agência Nacional de Águas lançou o “Atlas Nordeste” que propõe 530 obras descentralizadas para resolver o problema do abastecimento humano de 34 milhões de pessoas em 1112 municípios com mais de 5 mil habitantes, em nove estados, a um custo de 3,3 bilhões de reais, metade do que custaria a transposição até 2010. Para as áreas rurais, as 800 entidades sociais que fazem parte da ASA – Articulação do Semi-Árido trabalham com mais de 40 tecnologias simples de captação e manejo de água para consumo humano e uso agropecuário. A partir da experiência do Programa Um Milhão de Cisternas, agora se avança para o Programa Uma Terra e Duas Águas, voltado para dotar as famílias de infra-estrutura hídrica para a produção sustentável.

Fica a pergunta gritante: por que e a serviço de quem está se impondo a mega-obra da transposição? A resposta devia acarretar o impedimento dessa insensatez – o que está nas mãos da sociedade organizada e do STF – Supremo Tribunal Federal, que precisam agir, antes que seja tarde.

Ruben Siqueira é Agente Pastoral da Comissão Pastoral da Terra, BA, colaborador e articulista do EcoDebate

in www.EcoDebate.com.br – 18/05/2007