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Artigo

Das transposições silenciosas, por Nísio Miranda

“Que sejamos iluminados e corajosos para discutirmos de forma ampla, sem hipocrisia, todas as transposições a que o Brasil, e principalmente o estado de Minas Gerais, estão sendo submetidos…”

1 – Sobre o que hoje existe

Nos dias 26/04 e 03/05 presenciei, entre surpreendido, feliz e estupefato, reacender-se a chama das discussões em torno do Projeto de Integração de Bacias do Rio São Francisco – como querem uns – ou simplesmente transposição do Rio São Francisco – como insistem outros – em debates patrocinados pela bancada do PT e do PC do B na Assembléia Legislativa de Minas. Dispuseram-se a expor suas idéias, agressivamente antagônicas, no primeiro dia, o deputado federal Ciro Gomes, ex-ministro da pasta gestora do projeto e, no outro, o professor Dr. João Abner, da UFRN.

Não prezo correr do debate, nem fugir à luta, como bom filho da pátria que sou. Mas confesso que preferiria ver a minha geração livre da sina e da missão desta encruzilhada nacional histórica e sei que muitos outros gostariam de se ver bem longe deste “cálice”. Mas melhor é que nos empenhemos em juntos – e NUNCA dispersos – buscar a solução mais harmônica possível, sob todos os aspectos. Nem sou do tipo que é contra, simplesmente por ser, ou a favor, pelo mesmo motivo. Por isso – e por questões profissionais e ideológicas – tenho feito questão de participar da maioria dos debates e palestras sobre o tema. E em nova confissão, rasgo meu peito ufanista: sou radicalmente a favor da REVITALIZAÇÃO URGENTE das bacias de todos os rios do meu País, a favor do Meio Ambiente saudável, da vida plena e digna para todos! Creio piamente na origem divina do homem, que o ilumina e permite escolher dentre dois caminhos o que melhor conduzir para que às próximas gerações sejam garantidas qualidade de vida, no mínimo equivalente à nossa, e mais oportunidades de dignidade e plenitude no viver. Para todos os povos do mundo e, principalmente, para a nação brasileira.

Isto posto, digo a que venho: como não poderia deixar de ser, chamar nossos leitores e leitoras à reflexão, diante de alguns fatos e argumentos.

Utiliza-se, no Brasil e no mundo, um meio de transporte de minerais chamado “mineroduto”. Causou-me surpresa – e antecipadamente reconheço a minha ignorância – saber que o mais antigo desses dutos no Brasil encontra-se em operação há 30 anos. Isso mesmo: 30 anos! Ele é o marco-zero da existência de uma mineradora, que eu soube somente a alguns dias, quando anunciaram a sua expansão e divulgaram a “comemoração”, em 11 de maio, do início de seu funcionamento, no ano de 1977.

Curioso que sou, pus-me em busca de mais informações sobre o engenho, a ponto de não resistir e escrever estas provocativas linhas, após muitas conversas com amigos que conhecem muito mais do que eu de inúmeras coisas, e alguma pesquisa aqui e acolá, de muitos escritos. O mais extenso condutor de minério do mundo, bem debaixo do meu nariz (congonhense que sou, lafaietense nascido), possui 396 Km, ligando uma mina em Mariana -MG, a uma usina de pelotização, em Anchieta-ES. Já transportou, em 28 anos de operação diuturna, cíclica e interminável (?), em uma viagem que dura aproximadamente sessenta e três horas, a 6,5 km/hora, passando por 24 municípios dos dois estados, a bagatela de 239 milhões de toneladas de concentrado (ou polpa) de minério de ferro, segundo dados da própria empresa. Grandes números para as minas gerais!

Para este transporte da polpa (ou seja, um minério absoluto, um extrato, sem resíduos, fruto da redução de muito mais quantidade de minério, é o que entendemos), estima-se um gasto de, aproximadamente, um litro de água para cada três quilos (três quilos!) de minério EXPLORADO.

Aí perguntamos: quanto de MINÉRIO se explorou para chegar à quantidade de POLPA transportada nos últimos 28 anos? Levando-se em consideração somente o montante transportado, quanto de água foi consumido? Alguém já fez a conta? E o que é feito desta água lá na ponta? É reutilizada? Irriga algum pedaço de terra? Serve para dessedentar animais ou gente? Lá na ponta, perguntamos. Porque ao longo da viagem já sabemos que ela não serve para outra coisa a não ser o transporte do produto…

E ainda: quanto de energia é gasto para o bombeamento desta lama? O que os municípios recebem pela passagem do empreendimento em seus territórios? Tem sido compensatório para eles o retorno financeiro da atividade exploratória (CFEM)?

2 – Sobre o que vem por aí

Segundo publicações especializadas, uma empresa nacional, em consórcio com uma multinacional, está investindo aproximadamente R$4,8 bilhões (US$ 2,35 bilhões) na implantação de um complexo de exploração e transporte de minério de ferro, composto por uma mina, localizada no município de Conceição do Mato Dentro, e uma usina de pelotização que será implantada no Estado do Rio de Janeiro, nos domínios do Porto de Açu, município de São João da Barra. O processo será o mesmo do exemplo anterior: explora-se o minério, transforma-se-o em polpa e transporta-se esta polpa até o porto pelo mineroduto de 525 Km de extensão.

Além de admitir, em seu relatório de Impacto ambiental, que é “inevitável” a supressão de mata nativa por onde o mineroduto passará (mais de vinte municípios mineiros, parques naturais federais, estaduais e municipais, além de áreas de proteção ambiental), os empreendedores já foram autuados pelo órgão fiscalizador do Sistema Estadual de Meio Ambiente (Sisema) de Minas, e suas atividades suspensas por extrapolarem a autorização que tinham para desmatamento, abrindo mais de 20 quilômetros de estradas sem a necessária autorização! Os técnicos constataram, ainda: a abertura irregular de estradas para acesso às áreas de perfurações de pesquisa mineral, a obstrução de um canal de drenagem de água pluvial pela construção das estradas, extração de cascalho para a manutenção delas, intervenção em áreas de preservação permanente (APP) e captação de água. O mais lastimável: a região integra a Serra do Espinhaço, elevada a “Reserva da Biosfera” em 2005, por declaração da Unesco, pela diversidade e riqueza natural que engloba.

De acordo com a fiscalização, os empreendedores têm apenas alvará de pesquisa mineral, concedido pelo Departamento Nacional de Pesquisa Mineral (DNPM) e a autorização para exploração florestal (Apef), do IEF-MG, que autoriza a supressão de 22,4 hectares numa área conhecida como Serra do Sapo, de onde pretende extrair o minério.

Pesa contra os investidores, ainda, segundo o ambientalista João Bosco Costa Lima – em matéria do Jornal Hoje em Dia –, que há casos até de ameaças aos atuais proprietários das terras em questão. “Moradores disseram que foram procurados e coagidos a vender suas terras ’porque o empreendimento vai sair de qualquer jeito”. A Associação Mineira de Defesa do Ambiente – AMDA, em seu website afirma que o projeto prevê 23 transposições de rios sobre as quais a população não está informada.

E a coisa parece ser extremamente rentável pois, antes mesmo de ser implementado o complexo de exploração e transporte de minério, uma empresa estrangeira já adquiriu por US$ 1,15 bilhão (a metade do investimento previsto), grande participação no empreendimento. Já que falamos em cifras, vale lembrar que em seu RIMA (Relatório de Impacto Ambiental), os empreendedores declaram que “em troca” pelos danos cometidos (somente aqueles sob licenciamento, dada a imprevisibilidade dos ilegais e acidentais…), destinarão R$8 milhões (!) para projetos ambientais. Será que alguém, entre sociedade, meio ambiente e capital, não sairá perdendo nessa troca?

Que sejamos iluminados e corajosos para discutirmos de forma ampla, sem hipocrisia, todas as transposições (além das sangrias, pelos lençóis freáticos rebaixados, e a condenação à morte de nascentes e gente, pelas barragens de estéreis) a que o Brasil, e principalmente o estado de Minas Gerais, estão sendo submetidos pelo capital inescrupuloso e descomprometido com as questões do futuro! Em nome da vida – a que é e a que será!

Nísio Miguel Tôrres de Miranda – Bel. em Direito, Especialista em Direitos Difusos e Coletivos, poeta e ambientalista.

in www.EcoDebate.com.br – 11/05/2007