Transposição do Rio São Francisco, um debate necessário e urgente, por Delze dos Santos Laureano
[EcoDebate] Nos últimos dias tive a oportunidade de participar de diversas atividades nas quais o centro das discussões foi o projeto de Transposição do Rio São Francisco, inclusive dois debates na Assembléia Legislativa de Minas Gerais.
Penso que a toda a população deve ser informada, porque quem conhece o projeto real é contra a transposição. Há um projeto real e um projeto fantasia. Somente quem se prende ao projeto fantasia é a favor de tamanha improbidade administrativa. O projeto real é um crime ambiental, social, econômico e cultural, para não dizer outros.
Quero, em poucas palavras, repassar um pouco do que aprendi com o Professor Doutor João Abner Guimarães Júnior , uma das autoridades que integra a equipe de assessores do corpo jurídico que questiona, em 17 ações judiciais, o processo de licenciamento ambiental da Transposição – o EIA/RIMA. Essas ações aguardam o julgamento de mérito no Supremo Tribunal Federal, sob a relatoria do ministro Sepúlveda Pertence que, de forma questionável, suspendeu a liminar que impedia a Licença de Instalação. Os estudos da equipe do professor Abner, que esteve em Belo Horizonte de 03 a 05 de maio (de 2007), têm causado muita indignação naqueles que não estão acostumados a mandar sem ser questionados, especialmente os da velha oligarquia brasileira. Também incomoda os que sobrevivem da malsinada “indústria da seca”: políticos, latifundiários e as grandes empreiteiras da construção civil.
O projeto fantasia, imaginário, assumido no discurso oficial, diz que não podemos negar um caneco de água para os nossos irmãos nordestinos do semi-árido. O presidente Lula chegou mesmo a afirmar que somente quem não viveu o drama da seca pode ser contrário à transposição. Afirma-se que a obra vai custar muito menos – seis bilhões e meio de reais – do que custam os programas de abastecimento emergencial a essa população, seja com o pagamento de carros-pipas, seja com a perfuração de poços artesianos ou com a construção de açudes e adutoras. Ademais, consideram que apenas 1% da água do Rio São Francisco, remanescente não outorgado, isto é, 26,5 m³/s, será bombeada na transposição. Se isso fosse verdade não haveria resistência, inclusive há consenso no Comitê da Bacia. Entretanto, o projeto real é bem diferente.
Tudo indica que a transposição não será apenas de 26,5 m³/s. O canal previsto no projeto tem a capacidade de transportar 127 m³/s de água, o equivalente a mais de duas vezes o consumo da grande São Paulo, já que o sistema Cantareira capta 50 m³/s. Como o estudo de impacto ambiental considerou somente o bombeamento de 1% das águas (vazão mínima) e não a vazão máxima (127 m3/s), concluímos que a dimensão do canal projetado leva a dois raciocínios necessários. O aumento artificial do custo da obra, o que viola o princípio da probidade administrativa, ou a previsão não revelada de atendimento da demanda reprimida na ponta, especialmente para a hidronegócio. Dessa forma o volume retirado será muito maior do que o previsto no estudo, o que viola o princípio da precaução, consagrado no Direito Ambiental.
Os índices oficiais dos recursos hídricos existentes nas bacias, doadora e receptora, têm contradições que precisam ser auditados. Não foram considerados impactos diretos na bacia doadora. O fato de a água ser retirada à jusante da represa de Sobradinho não elimina o impacto na bacia doadora. Para explicar melhor: o rio já sai da nascente com um débito de vazão à frente, sob pena de morrer pela foz. Os cientistas sabem que todo rio que morreu no mundo, começou a morrer pela foz. Já foram pescadas espécies marinhas a 70 km de distância do mar. A língua salina do oceano Atlântico está adentrando no Rio São Francisco cada vez mais. Há 400 anos atrás era o São Francisco que adentrava no mar cerca de 30 quilômetros. Para garantir o nível de vazão ecológica há de se regular a retirada de água ao longo de todo o Rio.
Há uma manipulação de dados para justificar, de um lado a necessidade da obra, de outro o objetivo de passar a falsa idéia de que o problema da seca no nordeste vai ser afinal resolvido com a transposição. A verdade nua e crua é que a transposição é desnecessária
Vamos pensar no custo da obra. Ela é isolada o maior investimento previsto no PAC – Programa de Aceleração do Crescimento – do Governo Federal. As obras irão consumir pelo menos um bilhão de reais do orçamento anual, muitos anos, para atender apenas 5% (cinco por cento) da população do semi-árido nordestino, o que torna o projeto caríssimo, injusto e inadequado. Grande parte da população considerada como beneficiária já tem água disponível. Ou seja, é “chover no molhado”. Não está prevista a capilaridade do sistema para atender a população difusa da região. A solução para a população ainda não atendida poderia vir de projetos regionais menos onerosos e com menor risco de impactos ambientais e estruturais. O professor Abner propõe como alternativa uma rede de obras pequenas e médias que passa pela construção de mais adutoras como as existentes no seu estado, o Rio Grande de Norte, que tem atendido bem a população. Deve-se levar em conta a existência de 70 mil açudes (400 grandes) nos estados do Nordeste, como o açude de Orós no Ceará, considerado o maior do mundo e o açude Armando Ribeiro Gonçalves no rio Piranhas-Açu – 2a maior barragem do Nordeste com capacidade de acumulação de 2,4 bilhões de m³ de água.
Iniciada a obra ela só atingirá o seu objetivo se vier a ser concluída. O sistema não poderá entrar em funcionamento se não ligar as duas pontas. O bombeamento de águas só será iniciado após o término de toda a construção. Qualquer imprevisão orçamentária que paralise as obras poderá fazer da transposição o maior “elefante branco” da América Latina. A água da transposição será lançada em grandes açudes e rios da região, alguns muito poluídos e terá um custo de 5 a 7 vezes maior que o atual pago pelos produtores agrícolas da região. Na tarifa de água será embutido o custo do funcionamento do sistema, cerca de 80 a 100 milhões por ano. Como os empresários de produção de camarão e da fruticultura para exportação não terão como pagar esse custo, porque inviável economicamente em uma economia globalizada, quem pagará 85% da conta será a população urbana, via subsídio cruzado. Mais grave: 70% da água irão para o hidronegócio, outra parte para a indústria e a menor parte para o abastecimento humano.
A energia necessária para o bombeamento da água a ser transposta, com elevações que chegam a mais de 300 metros de desnível, consumirá o equivalente a toda a energia produzida na hidrelétrica de Três Marias, em Minas Gerais. Como o sistema já está comprometido, usinas nucleares ou termelétricas, que são de custo muito mais elevado, deverão entrar em ação para viabilizar o sistema. Conclusão, sendo as redes de distribuição de energia elétrica todas interligadas, o custo total da energia gasta na transposição elevará o preço da tarifa para todos os brasileiros. Não existe milagre nesta estória. Ou seja, essa “solidariedade” do Governo brasileiro à população do semi-árido nordestino será bancada, de forma impositiva, por todos os brasileiros. Esses recursos do orçamento poderiam ser destinados a obras que atenderiam a objetivos sociais mais justos, inclusive mais eficazes para a própria população do semi-árido e em conformidade com os objetivos constitucionais. Como dizia meu pai: estão fazendo “cortesia com chapéu alheio”. Será um presente de grego.
Por tudo isso, imprescindível o acesso de todos à informação. Deveria haver um plebiscito nacional, conforme possibilidade constitucional intrínseca, já que a questão é relevante e não pode ser atropelada pelos interesses econômicos apenas. Um plebiscito precedido de amplo debate com direito ao contraditório e sem os artifícios da publicidade. O Poder Judiciário ainda deve ao povo brasileiro a apreciação do mérito das questões levadas ao seu conhecimento. Existem diversas contradições no EIA-RIMA ainda pendentes de julgamento e que precisam ser julgados antes que sejam iniciadas as obras.
Finalmente, não se trata de projeto de integração de bacias no eufemismo proposto para a nova roupagem que se deu ao mesmo projeto do Governo anterior. Mudou-se o nome para eliminar a idéia de que seria mudado o curso do Rio São Francisco. No entanto, trata-se de transposição sim, pois as águas retiradas da bacia serão desviadas e não retornarão ao curso, comprometendo o Rio na foz.
A luta contra este projeto faraônico e oportunista deve ser a bandeira da nossa geração. Urge assumirmos nosso papel histórico frente às gerações futuras, sob pena de ouvirmos dos nossos netos a velha pergunta: “Onde estavam vocês naquele momento? O que fizeram para impedir tamanha atrocidade?”
A sociedade civil organizada deve exigir que o Governo Lula desista imediatamente do projeto de Transposição do Rio São Francisco. Conclamamos toda a sociedade, a exemplo de Dom Luiz Flávio Cappio, que se levante antes que seja tarde. Na luta, até a vitória!
Delze dos Santos Laureano, e-mail: delzesantos@hotmail.com
Delze dos Santos Laureano – Mestre em Direito Constitucional, professora de Direito Constitucional e Agrário; advogada da RENAP – Rede Nacional dos Advogados Populares. E-mail: delzesantos@hotmail.com
Professor Doutor João Abner Guimarães Júnior – Engenheiro civil, mestre e doutor em Recursos Hídricos pela USP e Universidade de São Carlos, integrante da equipe de professores da pós-graduação da UFRN.
in www.EcoDebate.com.br – 09/05/2007