Ética da sobrevivência e lógica financeira, por Washington Novaes
“No Brasil, como em toda parte, o setor pesqueiro embarca a cada dia em novas crises”
[O Estado de S.Paulo] Já que bagres e outros peixes da Amazônia estão na moda, por causa das hidrelétricas no Rio Madeira, talvez valha a pena falar um pouco deles e entrar no tema da pesca. Afinal, só de tambaquis, matrinxãs e pirarucus a Amazônia produz 17 mil toneladas, 17 milhões de quilos por ano. Pode-se imaginar o que representam na alimentação de mais de 4 milhões de pessoas que vivem fora das cidades na região (Radiobrás, 3/9/06).
No Brasil, como em toda parte, o setor pesqueiro embarca a cada dia em novas crises.
A mais recente é a da pesca da lagosta, que há poucas semanas mobilizou o Ministério do Meio Ambiente numa tentativa de definir ações para recuperar o setor, porque a produção já caiu de 11 mil toneladas por ano para menos de 7 mil, principalmente por causa da “exploração predatória”. Ainda assim, em 2006 esse setor exportou US$ 82 milhões.
Já na área do cultivo de camarões em cativeiro, relatório de um grupo de trabalho da Câmara dos Deputados listou nada menos de 122 impactos sobre ecossistemas, a saúde humana e comunidades tradicionais.
Talvez o mais grave seja o impacto sobre mangues – berço da vida no mar -, praticamente todo ele em áreas públicas. E também nesse setor o declínio está presente: produziu 90 mil toneladas em 2003 e 65 mil em 2006 (Agência Brasil, 23/10/06).
Na verdade, todo o setor da pesca no Brasil está diante de graves questões. Em setembro do ano passado, o Programa de Avaliação do Potencial Sustentável de Recursos Vivos na Zona Econômica Exclusiva (Revizee), conduzido pelo governo federal, deixou claro que nada menos de 80% dos recursos pesqueiros nacionais estão ameaçados pela sobrepesca.
Outro estudo, de várias instituições, entre as quais o Instituto Oceanográfico da USP, apontou a “situação preocupante” das principais espécies pescadas na Região Sul-Sudeste.
Considerou mesmo “um equívoco” construir 500 novas embarcações com financiamento governamental de R$ 1,5 bilhão (prevê-se também reduzir em 20% o preço do combustível e abrir novas áreas públicas ao cultivo, segundo a Secretaria da Pesca). Mas, ainda assim, o que se planeja é multiplicar por quase 10 a produção, passar do atual 1,1 milhão de toneladas para 10 milhões (Secretaria de Imprensa da Presidência da República, 29/6/06).
A maior parte dessa produção seria gerada pelas aqüiculturas (que já produzem quase 50% dos peixes consumidos no mundo), embora estas também estejam com sua sustentabilidade questionada, porque em praticamente toda parte consome-se mais de um quilo de alimentos para produzir um quilo de produto final.
Ainda no ano passado, o documentário vencedor do 8º Festival Internacional de Cinema e Vídeo Ambiental da cidade de Goiás, Ovas de Ouro, mostrou a insustentabilidade das culturas de salmão no Chile, exatamente pelo consumo de insumos maior que a produção, pela forte degradação do ambiente marinho, pela lastimável situação dos empregados e pelo déficit no balanço de pagamentos que gera.
Ainda assim, a aqüicultura é o setor alimentar em mais rápido crescimento no mundo, com 47,8 milhões de toneladas anuais produzidas.
Alertas repetidos têm sido emitidos pelas agências da ONU sobre a inquietante situação da pesca no mundo.
Os últimos relatórios dizem que 52% dos recursos pesqueiros já estão “plenamente explorados”; 25% sobreexplorados (dos quais 7% já esgotados); e 20% “moderadamente explorados”. E duas das regiões em que a situação mais preocupa nos dizem respeito – o Atlântico Sul e o Nordeste.
Fora a produção das aqüiculturas, 95 milhões de toneladas são pescadas anualmente. Somada a produção das aqüiculturas, são mais de 140 milhões de toneladas por ano, das quais 105,6 milhões se destinam a consumo humano (que dobrou em 30 anos) e o restante à produção de farinha de pescado (para alimentar peixes) e azeite.
É um setor bastante subsidiado, com US$ 15 bilhões anuais, segundo o Banco Mundial. As exportações já totalizam US$ 71 bilhões por ano. O consumo médio no mundo é de 16 quilos anuais por pessoa; no Brasil, 7 quilos (8% do consumo de carnes).
Complicado é que as previsões da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) afirmam que, apesar da crise, a pressão sobre os estoques triplicará até 2050, no ritmo atual. E continua a perder-se 20% do que é pescado, com peixes presos acidentalmente nas redes.
Nos oceanos, o número de zonas mortas dobrou em 15 anos, principalmente por causa do lixo plástico que a elas chega – média de 18 mil fragmentos por quilômetro quadrado – e dos resíduos de fertilizantes usados na agricultura (100 milhões de toneladas por ano chegam aos oceanos).
Sessenta por cento dos ecossistemas e da biodiversidade em águas profundas e em alto mar estão em perigo, com ameaças crescentes, diz o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, num estudo conjunto com a União Internacional para Conservação da Natureza.
Ainda há poucas semanas, a Associação Americana para o Progresso da Ciência fez um apelo para que se embargue a pesca em águas profundas, a mais de 500 metros, onde está sendo perdida a biodiversidade, antes mesmo de estudada – e perdida com a pesca por embarcações moderníssimas, que recebem US$ 152 milhões por ano em subsídios para 1,1 bilhão de litros de combustíveis que usa.
Ao fim e ao cabo, um panorama que se assemelha ao de outros setores, com a prevalência de lógicas financeiras sobre a ética da sobrevivência.
Só que “as populações de peixes e outros animais marinhos, como os moluscos, vão entrar em colapso em 2048 se as tendências de pesca e destruição dos hábitats marinhos continuarem no mesmo ritmo.
O resultado pode ser a drástica diminuição da quantidade de comida para os seres humanos”, afirma estudo publicado na revista Science (Estado, 3/11/06). Uma previsão para o tempo de vida dos nossos filhos e netos.
Washington Novaes é jornalista especializado em meio ambiente (wlrnovaes@uol.com.br).
(www.ecodebate.com.br) artigo originalmente publicado pelo O Estado de S.Paulo – 04/05/2007