A missão de cada um, por Delze dos Santos Laureano
Os desafios das catástrofes anunciadas como conseqüência do aquecimento global
[EcoDebate] O totalitarismo, a experiência política fundamental do Século XX, despertou em Hannah Arendt o pensar e o engajamento na Política. O acontecimento marcante deste despertar foi o incêndio no Reichstag – o parlamento alemão. Os estudiosos da obra de Arendt afirmam que foi exatamente a partir da experiência do totalitarismo que encontramos o brilho, a lucidez e a originalidade no pensamento da autora. Para Arendt o pensar surge toda vez que o homem defronta com alguma dificuldade, que o leva a tomar novas decisões. Por isso, o pensar significa, sempre, um novo começo; ele representa, sempre uma aproximação, pelo homem, de sua essência: o início.
Podemos então concluir que foi o contexto da experiência totalitária do século XX que iluminou a reflexão de Hannah Arendt sobre a Política. Suas reflexões são referências fundamentais para nós hoje, quando ao primeiro sinal na fraqueza no agir humano, abandonamos a esperança de construirmos, ainda nesta existência, as possibilidades de uma vida justa em sociedade.
Partindo do pensamento de Hannah Arendt, acredito que os desafios que estão por vir, as catástrofes anunciadas em vista do aquecimento global, têm de, no mínimo, fazer-nos voltar à nossa própria essência: o início. As dificuldades presentes, que já são muitas, e as anunciadas para um tempo breve, devem nos levar, a todos, ao pensar. Mais do que pensar, que é apenas o começo, precisamos retomar comportamentos e atitudes que devem ser levadas a sério, e imediatamente.
Há poucos dias, ouvi um amigo dizer que atribuir ao homem, de forma genérica, a responsabilidade por todas as mazelas ambientais atuais e que levaram ao anúncio do aquecimento global, da redução da camada de ozônio na atmosfera e da mudança sem precedentes no clima, é injusto e ideológico. Essa atribuição, segundo ele, encobre questões muito mais abrangentes. Defende que os maiores causadores das agressões ao meio ambiente são as empresas capitalistas, como as mineradoras, os governos dos países chamados “desenvolvidos” que formularam suas políticas assentadas em premissas de exploração sem medida dos bens naturais e sem considerar a capacidade limitada do planeta em recuperar as enormes agressões sofridas. Também as conseqüências desta política capitalista radical à revelia das camadas mais desprotegidas da sociedade e as opções por um modo de vida insustentável em sua essência. Um exemplo: o transporte individual em automóveis, onde cada carro leva apenas uma pessoa, mas queima enorme quantidade de combustível fóssil. As montadoras, indiferentes, insistem no aumento de suas vendas.
Tenho de concordar que as maiores depredações ambientais, as maiores intervenções negativas ocorrem como conseqüência de uma demanda exacerbada de matéria prima como os bens minerais, os produtos primários para a geração de energia, ou até mesmo alimentos, produzidos agora em escala industrial. Também a incapacidade de estender a toda a população mundial os modos de vida condizentes aos novos costumes, já que a maioria da população é atirada ao consumo perdendo sua herança cultural e sem recursos econômicos para tratar adequadamente os resíduos produzidos. Basta ver a quantidade de sacolas plásticas, fraudas descartável e garrafas de plástico boiando nas águas dos rios e nas praias.
Nesse novo modo de produção, que se instaurou com a modernidade, especialmente a partir da Revolução Industrial, impera a exigência da rapidez alucinante na produção de mercadorias e o gasto cada vez maior de energia em todas as fases do processo. Inclusive para dar os acabamentos que fazem parte do modo de vida denominado “moderno”: muita embalagem plástica, muito isopor, embalagem dupla, tripla, papel sobre papel, muito produto químico. É o império da aparência, das coisas e das pessoas.
Todavia, volto ao pensar. Não sei se na atual conjuntura basta descobrir de quem é a culpa. O certo já foi anunciado: o risco agora é de todos. As conseqüências, certamente, chegarão primeiro às camadas empobrecidas e as mais desprotegidas, aos que moram nas áreas de risco, nos casebres frágeis, às nações que não dispõem de recursos para suportar situações de calamidade.
O mundo científico deu a notícia. No Brasil a região mais atingida será o Nordeste com a desertificação. Dos continentes, o que será assolado pela fome, exatamente pela incapacidade na produção de alimentos suficientes face às condições climáticas, será o africano. As tempestades, cada vez mais violentas, atingirão as áreas costeiras e as regiões onde vivem povos tradicionais, como as ilhas do Pacífico.
Assim, sendo o risco de todos, acredito que cada um tem de fazer algo. Se não conseguimos lutar de frente contra o capitalismo, podemos destruir os seus pés de barro, começando por entender de que forma fomos engolidos, em tão pouco tempo, por todas essas mazelas capitalistas. Quero aqui fazer uma digressão. Quero voltar ao tempo, como fez o Amanuense Belmiro de Ciro dos Anjos: “Se digo tolice, ou apenas repito idéias velhas, que me perdoem: adquiri neste escritório da Rua Erê, o hábito de filosofar e fico horas e horas a pensar em certos fenômenos.”
Em Ciro dos Anjos aprendi ser assim: “a cada instante, mergulho no passado e nele procuro uma compensação, as secretas forças da vida trazem-me de volta à tona e encontram meios de entreter-me com as insignificâncias do cotidiano. Pelo oposto, é comum, quanto o atual me reclama a energia ou o pensamento, que estes se diluam e o espírito de desvie para outras paisagens, nelas buscando abrigo. Tais solicitações contrárias, em luta constante, levam-me às vezes a tão subitâneas mudanças de plano, que minha vida, na realidade, se processa e arrancos e fugas, intermináveis e sucessivos, tornando-se ficção, mera ficção, que se confunde no tempo e no espaço.”
Quero resgatar o tempo e o espaço. Momentos em que fui feliz, vivendo de modo muito mais simples do que vivo hoje. Estou convicta que o fato de dispormos hoje de tantos luxos, de tantas oportunidades de consumo não nos tornaram mais felizes.
Nasci numa pequena cidade do interior de Minas. Somos cinco irmãos, filhos de pequenos proprietários rurais. Crescemos sem grandes privações, mas também sem nenhum luxo. Todas as despesas da casa eram muito bem pensadas. Meu pai sempre evitou fazer dívidas. Estudamos em uma escola pública estadual onde estudavam todas as crianças e jovens da cidade. Os mais estudiosos, depois vinham para Belo Horizonte para fazer um curso superior. Normalmente, sem dificuldades, passavam no vestibular e se tornaram bons profissionais.
Lembro-me que tínhamos poucas roupas. Todos sabiam que crianças crescem rápido e perdem as roupas ainda novas. O sapato era um só, para ir à escola, para ir à missa e para passear. Os cadernos eram comprados aos pacotes. Brochuras iguais para todos. Cada um encapava ao seu gosto. A criatividade era muita. Os brinquedos eram os mesmos para todos os filhos: bolas, lápis para desenhar, gaiolas de passarinho, papagaios de papel colorido, bolas de vidro, cordas para pular muito. Brincavam as mesmas brincadeiras menina (eu) e os meninos. As nossas refeições diárias eram extremamente simples: café com leite, bolo ou quitanda pela manhã. Se não tinha o que acompanhar o leite, podia ser banana assada, cozida, fubá suado, um ovo cozido ou frito. No almoço, feijão, arroz, uma verdura da horta da casa refogada, uma carne, mas nem todo dia. À tarde minha mãe sempre fazia um delicioso bolo de fubá, com o creme que sobrava do queijo ou do requeijão que era feito para ser vendido. De vez em quando a mesa era enriquecida com o queijo produzido em casa. No jantar, sopa ou uma bela canjiquinha.
Água, gastávamos muito pouco. Somente fomos dispor de água encanada dentro de casa na década de 1970. Até então as vasilhas eram lavadas numa bica d’água que corria dia e noite na porta da cozinha. Água que depois juntava-se a um rego maior que tocava o moinho de pedra ou o monjolo. Hoje esta água praticamente secou. Televisão, somente fomos ter uma na década de 1980. Às tardes, brincávamos no terreiro até que a noite caísse. Eram os momentos de escutar os causos dos trabalhadores que voltavam da lida nas roças de milho e feijão, as estórias do meu pai, momento de curtir a volta dos bezerrinhos para o curral e ver os burrinhos que puxavam lenha para vender na cidade tomar banho na poeira. Líamos muito e ouvíamos muitas histórias, à luz tênue do lampião de querosene ou da lamparina. Lembro-me, agora de Cora Coralina que já notara: “antigamente as casas eram muito simples, os luxos ficavam para as igrejas…”
Hoje, morando em Belo Horizonte, quando almoço em restaurantes self sevice, penso no quanto é inútil comermos tantas variedades, tudo no mesmo dia. Os alimentos tornaram-se sem graça para nós, já que nada mais é novidade. Todos os dias podemos comer, do antes tão cobiçado pudim de leite condensado, às maças vermelhas que aromatizavam a casa inteira, ou qualquer fruta durante todo o ano. Antes só comíamos as frutas da época. Que delícia o tempo das goiabas vermelhas maduras! Saborear um franco caipira refogado, que delícia! Os alimentos produzidos em escala industrial tornaram-se insípidos. Lembro-me que meu pai tirava das melhores vacas leiteiras 5 ou 6 litros de leite por dia. O leite era saborosíssimo. Hoje, no mesmo sítio, vejo o meu irmão selecionando vacas que produzem em dois turnos 30 litros de leite por dia, sem gosto de nada e que vai parar dentro de uma caixa que vale mais do que o próprio leite. Meu irmão, assim como os pequenos proprietários rurais, sofre o desprezo do governo pelos trabalhadores do campo. Hoje, a produção aumentou, mas poucos lucram muito com atividades agrárias, a maioria ganha quase nada.
Poderia dar centenas de outros exemplos. Não precisa. Paro por aqui. Alguém pode dizer: esse modo de vida é inviável hoje face à população mundial existente. Posso concordar e daí concluir que a existência de uma população mundial em números ameaçadores, a ocupação por essa população, do território que deveria ser das matas, das águas e dos bichos, os modos de vida e a relação das pessoas com os bens naturais como a água, advêm de um modelo desenvolvido a partir da modernidade e principalmente do capitalismo: produção de medicamentos que atendem aos interesses das classes dominantes, construção de cidades que demandam grandes deslocamentos, mecanização e automação da produção agrícola e industrial, o que empurrou quase a totalidade da população rural para a cidade, dentre outros.
Saindo da digressão para o problema atual, vejo que hoje, para destruir os pés de barro do capitalismo, devemos buscar respostas que estão dentro de nós mesmos, em nossa história, no início. Vamos ter de, por nossa própria iniciativa, organizar nossa vida de modo a consumir cada vez menos. Para que tanta roupa? Nem pobre mais para doar estamos achando, pois os pobres estão abarrotados do lixo da classe média. Para que tanto sapato, tanto telefone, tanta parafernália de eletrônicos, de remédios? Remédio para ser feliz, remédio para não sentir dor, remédio para emagrecer, remédio para não ter que tomar remédio, remédio para não dormir, remédio para dormir. Para que dormir? Aprendi com Chico Buarque: “inútil dormir que a dor não passa!…”
Acredito que a contribuição de cada um deve ser este esforço de reencontrar em nossa própria essência um jeito mais simples de viver a vida. Na partilha destas velhas novas descobertas pode estar o segredo para a perpetuação da vida no Planeta Terra!
Delze dos Santos Laureano, e-mail: delzelaureano@uol.com.br
in www.EcoDebate.com.br – 16/04/2007
artigo enviado por Frei Gilvander Moreira, email: freigilvander@pcse.com.br, colaborador e articulista do EcoDebate