Transposição do Velho Chico: alguns DETALHES esquecidos, por Fernando Falco Pruski
[EcoDebate] Na condição de um técnico que trabalha há muitos anos na área de recursos
hídricos gostaria de trazer para reflexão alguns DETALHES??? os quais até
hoje não percebi nas acaloradas discussões que tenho presenciado a respeito
do tema, e que creio que poderiam contribuir para uma tomada de decisão mais
consistente em relação à transposição.
No Relatório de Impacto Ambiental – RIMA elaborado para a obtenção do
licenciamento ambiental do projeto de transposição do São Francisco consta
que a vazão a ser transposta poderá viabilizar a irrigação de
aproximadamente 161.500 hectares, e é principalmente neste segmento que
concentro a análise apresentada a seguir, por ser a irrigação justamente o
segmento responsável pelo maior consumo de água.
A bacia do São Francisco dispõe de uma área potencialmente irrigável de 3
milhões de hectares, da qual apenas 342.000 ha estão sendo irrigados, o que
representa a possibilidade de uma expansão da área irrigada de cerca de 9
vezes. Considerando que a vazão atualmente consumida pela irrigação é da
ordem de 90 m3 s-1 e que a vazão máxima de consumo alocável proposta no
Plano de Recursos Hídricos da Bacia Hidrográfica do São Francisco é de 360
m3 s-1, e, considerando, ainda, que toda a água fosse destinada ao uso da
irrigação (o que seria um absurdo, pois o consumo humano e a dessedentação
animal são prioritárias em relação a este uso), evidencia-se que, mesmo
assim, isto não possibilitaria, nem mesmo, a ocupação de metade da área
potencialmente irrigável.
Outro aspecto importante a ser considerado na análise do impacto decorrente
da transposição é de que quando se diz que a vazão a ser retirada (63,5 m3
s-1) representa apenas 3,5% da vazão disponível no São Francisco, que é da
ordem de 1.850 m3 s-1, não está se cometendo nenhum erro numérico, mas um
equívoco conceitual, uma vez que o verdadeiro valor de referência para o
planejamento dos recursos hídricos é de 360 m3 s-1 (vazão máxima de consumo
alocável). Assim, evidencia-se que a vazão a ser transposta é de 18% da
vazão efetivamente disponível na bacia, o que, não resta dúvida, é um valor
bem mais expressivo.
Deve-se adicionar a estes fatos o de que com o mesmo volume de água
transposto para as bacias receptoras é possível a irrigação de uma área até
4 vezes maior na bacia do São Francisco, onde se situam alguns dos
municípios brasileiros com menor índice de desenvolvimento humano. Assim, a
redução do volume de água disponível para uso na bacia poderá representar
uma redução de até 4 vezes na capacidade de geração de empregos em relação
àqueles que serão gerados fora da bacia.
Um outro comentário que não tenho percebido em nenhum fórum de discussão é o
relacionado ao custo de bombeamento de água necessário para transpor o
desnível de 165 m do eixo Norte (equivalente a um prédio de cerca de 55
andares) ou de 304 m do eixo Leste (equivalente a um prédio de cerca de 100
andares). Os custos operacionais e de manutenção de um sistema de
bombeamento desta magnitude não são nada desprezíveis. Para exemplificar,
considerando o custo da energia requerida para vencer o desnível do eixo
Norte ter-se-ia aumentos do custo de produção de 22, 29 e 29 % para as
culturas de citros, melão e banana, respectivamente. Para as culturas ditas
de subsistência os aumentos nos custos seriam ainda mais elevados, e
correspondentes a 35% para o feijão e 74 % para o milho. Se consideradas as
condições impostas para vencer a altura geométrica correspondente ao eixo
Leste o impacto no custo de produção seria ainda mais expressivo,
representando percentuais de 40, 53, 53, 65 e 136 %, para as culturas de
citros, melão, banana, feijão e milho, respectivamente. É importante frisar
que estes custos são apenas para garantir a elevação da água para vencer os
desníveis existentes e não consideram os custos de implantação do projeto,
de bilhões de dólares, além de também não estar se considerando o pagamento
pelo uso da água propriamente dito e para as obras de infra-estrutura
necessárias para a sua distribuição.
Fica a dúvida se em mundo tão globalizado e competitivo, como o que estamos
inseridos, aumentos do custo de produção desta ordem de grandeza ainda
possibilitariam o desenvolvimento de uma agricultura viável economicamente.
Não são raros no Brasil casos em que o irrigante, mesmo com o sistema de
irrigação já implantado e com sua propriedade às margens do manancial
hídrico, deixa de irrigar em virtude do custo de energia superar o benefício
associado ao aumento de produtividade esperado pelo uso da irrigação.
Deve-se mencionar ainda que o custo estimado para bombear a quantidade de
água necessária para a produção de 1 tonelada de feijão seria mais de 15
vezes superior ao custo requerido para transportar esta tonelada de grão por
rodovia.
Somando à energia consumida com o bombeamento da água a que deixará de ser
produzida em virtude da retirada pela transposição tem-se uma abstração de
energia bem superior a toda aquela produzida pela hidrelétrica de Três
Marias. Como “jogar fora” esta energia se, periodicamente, discute-se a
necessidade de investimentos no setor elétrico em virtude da sempre iminente
crise energética. Fica o questionamento quanto à forma de compensação desta
perda energética para o sistema elétrico nacional e se o custo e o impacto
ambiental advindos destas abstrações não deveriam também estar sendo
computados nos custos da transposição.
Outro aspecto importante diz respeito à população beneficiada pelo projeto
de transposição. No RIMA consta que a área diretamente beneficiada pelo
projeto corresponde a uma faixa de 5 km em cada margem do canal e que com o
aperfeiçoamento do suprimento de água é prevista uma redução de 340 mil no
número de pessoas que estariam expostas às situações emergenciais das secas,
bem inferior (apenas 2,8%) ao valor veiculado de 12 milhões de pessoas. A
grande maioria desta população de 12 milhões está fixada em áreas
metropolitanas ou em áreas que dependerão de expressivas obras suplementares
de condução da água para poderem usufruir dos benefícios da transposição.
Esta é uma das críticas que até os técnicos residentes nas bacias receptoras
tem feito ao projeto de transposição. Segundo eles, se os recursos
financeiros previstos no projeto de transposição fossem utilizados na
implantação de sistemas de distribuição dos recursos hídricos já existentes
ter-se-ia um alcance social muito maior que a construção de uma grande obra
de engenharia como a prevista neste projeto.
Talvez o único inconveniente seja justamente este, somente seria mais
eficiente, mas e a grande obra, onde estaria? Se não fosse assim, porque
construir uma obra para transportar uma vazão de 127 m3 s-1 quando
efetivamente ela será utilizada para transportar uma vazão de 63,5 m3 s-1.
Seria porque os recursos são públicos?
Portanto pode-se concluir, do ponto de vista técnico, que o principal fator
restritivo à expansão da área irrigada na bacia do São Francisco não é o
solo, e sim a água, com o que a abstração do volume de água pela
transposição implicará em uma expressiva redução da área potencialmente
irrigável e do potencial de geração de empregos. Todo este esforço estaria
sendo desenvolvido a fim de disponibilizar água para a irrigação de culturas
em que o custo de produção seria majorado em valores que excederiam a
receita líquida, tornando a sua exploração inviável economicamente.
Logicamente uma decisão desta importância deve também considerar aspectos de
caráter social e ambiental, sob o risco de vir a ocorrer o já acontecido em
outros grandes projetos em que não foram considerados todos os fatores
fundamentais à sua sustentabilidade. Como esquecer projetos como o Jaíba,
que mesmo situado nas margens do São Francisco e tendo sido concebido há
mais de 30 anos para propiciar a implantação de irrigação em 100.000 ha, até
hoje não possui nem 10% de sua área irrigada, embora todas as estruturas de
bombeamento e de condução de água tenham sido concluídas e se encontrem hoje
com grande ociosidade.
Como qualquer brasileiro, fico extremamente sensibilizado quando é dito que
este projeto é a redenção do Nordeste, uma região castigada tanto pelo clima
árido quanto por ações ilusórias de pessoas que prometem a esta população
tão sofrida soluções e projetos que, uma vez implantadas, são
irresponsavelmente abandonados, voltando a situação à condição original e
deixando a população ainda mais cética. Como toda a população brasileira,
não sou contra a redenção do Nordeste, como também não sou contra a redenção
da saúde, da educação, da segurança pública, muito menos da dignidade na
política. E, talvez, justamente por este motivo, até pouco tempo atrás eu
também acreditava na factibilidade do projeto de transposição, uma vez que a
promessa é muito tentadora e a filosofia é válida. A operacionalização é que
é contestável. E COMO!
O autor é professor titular da Universidade Federal de Viçosa,
Departamento de Engenharia Agrícola.
in www.EcoDebate.com.br – 14/04/2007
artigo enviado por João Suassuna, colaborador e articulista do EcoDebate