agrocombustíveis x alimentos: Uma aposta preocupante, por Fátima Mello e Adhemar S. Mineiro
[O Globo] Depois da visita do presidente dos EUA George Bush ao Brasil e do segundo encontro dos governantes do Brasil e dos Estados Unidos, o governo brasileiro renova a aposta no incentivo à produção de álcool combustível voltada para o mercado externo. É preocupante que a aposta do Brasil como liderança de uma nova matriz energética a partir da agroenergia – algo positivo, em tese – seja por um caminho que deve aprofundar a concentração fundiária, a produção em monoculturas voltadas para exportação e o esvaziamento da produção de alimentos.
Os programas de incentivo à produção de biocombustíveis pela agricultura familiar podem ser um estímulo, porém o foco no mercado externo tende a concentrar os ganhos nas mãos do setor exportador e das grandes empresas que controlam a cadeia produtiva. A busca por alternativas à atual matriz energética deve priorizar ganhos para a agricultura familiar, para o mercado interno e em especial para o consumo da população de baixa renda, colocando em pauta a necessidade de mudanças nos atuais padrões insustentáveis de consumo.
Vista desse prisma, a conclusão da Rodada Doha na Organização Mundial do Comércio, através de promessas de expansão das exportações da agricultura comercial em troca de perdas no setor industrial, apresenta contradições agudas com o objetivo de uma aceleração do crescimento econômico. O governo deve dizer claramente: crescer de forma mais acelerada é efetivamente um objetivo, ou o que vale é o poder dos poucos que ganham com a expansão do comércio internacional do país, em troca dos efeitos perversos sobre a renda, o emprego e o mercado interno?
Entre os muitos pontos a serem debatidos sobre as negociações no âmbito da OMC, um é especialmente importante: num momento em que as discussões internas no Brasil se concentram no clamor pela retomada do crescimento econômico, expresso nos discursos da campanha eleitoral e, mais recentemente, no lançamento do PAC – Plano de Aceleração do Crescimento, existe uma contradição forte entre o objetivo do crescimento econômico e a ampliação da opção preferencial pelo mercado externo.
É tênue ou inexistente a relação entre crescimento das exportações e crescimento do PIB. Segundo dados oficiais sobre a balança comercial, em 2003, as exportações cresceram 21% e o saldo comercial quase 89%, enquanto o PIB teve um pífio crescimento de 0,5%. Já em 2006, enquanto o saldo comercial crescia apenas 3,1% e as exportações 16%, o PIB crescia 2,9%, mais do que no ano anterior.
Além disso, a barganha proposta para viabilizar o rompimento do impasse na Rodada Doha é dramática do ponto de vista do mercado doméstico. O país estaria assegurando a renda exportadora para uns poucos em troca da perda de renda e emprego para muitos, o que traria impactos negativos se o objetivo declarado – a aceleração do crescimento econômico – for para valer.
Ainda mais complicada é a promessa do governo de compensações e recursos para a reestruturação dos setores industriais que serão afetados pela barganha em curso, em um momento de forte restrição orçamentária, onde o Ministério da Fazenda anuncia que um dos objetivos do PAC é reduzir o déficit nominal das contas públicas. Em um quadro em que os responsáveis pelo orçamento público prometem fazer milagres, e é restringida a possibilidade de melhorias salariais para os trabalhadores do setor público, a promessa significa na prática ainda menos recursos orçamentários disponíveis para esses setores.
Teríamos ainda, caso fossem retomadas as negociações com a barganha proposta, uma nova e forte pressão do eventual dinamismo dos setores da grande agricultura comercial de exportação sobre a produção e a propriedade da agricultura familiar e camponesa, cuja capacidade de empregar brasileiros na produção rural, se encadear dinamicamente com outros setores e atender ao mercado interno é muito maior do que a da grande agricultura comercial.
Resta, mais uma vez, a pergunta: crescer de forma acelerada é apenas uma retórica ou um objetivo que levará em conta o efetivo desenvolvimento?
FÁTIMA MELLO é secretária-executiva da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (Rebrip). ADHEMAR S. MINEIRO é economista e assessor da Rebrip.
(www.ecodebate.com.br) artigo originalmente publicado pelo O Globo – 13/04/2007