EcoDebate

Plataforma de informação, artigos e notícias sobre temas socioambientais

Artigo

agrocombustíveis x alimentos: A opção brasileira, por Marco Aurélio Garcia

[O Globo] A recente visita do presidente Bush ao Brasil e o encontro que manteve com Lula semanas depois, em Camp David (EUA), provocaram uma inusitada discussão sobre o papel dos biocombustíveis na matriz energética latino-americana e mundial.

O presidente Fidel Castro fez críticas ao uso do etanol e do biodiesel, compartilhadas por outros presidentes amigos do Brasil. Para Castro, a produção de etanol a partir do milho, sobretudo, beneficia o consumo dos ricos às custas da “queima de alimentos” para os pobres.

A opção brasileira pelos biocombustíveis vem de longe. Ganhou corpo a partir de 2003 e esteve presente nos diálogos de Lula com seus colegas latino-americanos nos últimos anos. Daí resultaram iniciativas concretas com Bolívia, Uruguai, Equador, Haiti e Venezuela.

O interesse dos Estados Unidos por esta alternativa energética deu maior visibilidade ao tema. É compreensível e legítimo, assim, que governantes que têm críticas à administração Bush aproveitem a oportunidade para realçar diferenças com Washington.

As escolhas energéticas do Brasil não devem, porém, transformar-se em cenário para uma discussão político-ideológica, como se estivessem configurados dois campos opostos nas Américas. A cooperação em biocombustíveis com os Estados Unidos é válida e não altera em nada a política externa do Brasil na região.

Em São Paulo e Camp David, Lula reiterou a ênfase de nossa diplomacia na integração sul-americana. Em ambas as ocasiões, afirmou que a América do Sul vive um momento privilegiado, com governos democráticos, legitimados pelo voto popular, movidos por uma preocupação reformadora que tem permitido incluir social e politicamente milhões de homens e mulheres duramente golpeados, nas últimas décadas, pela aventura neoliberal que assolou a região.

Em sua fala nos Estados Unidos, Lula explicitou por que esta opção energética ocupa um lugar central no Brasil, um país auto-suficiente em petróleo, que tem mais de 60% de sua eletricidade originária do setor hidroelétrico, que será brevemente auto-suficiente em matéria de gás, além de possuir avançados programas nos domínios solar, eólico e nuclear.

O governo brasileiro está convencido de que os combustíveis renováveis – etanol e biodiesel – apontam para o enfrentamento de quatro grandes desafios do século.

O primeiro é o da crise energética, que afeta todos os países, inclusive os desenvolvidos, e que, em nossa região, constitui sério obstáculo à retomada do desenvolvimento acelerado de que necessitamos. Na África, na Ásia, na América Central e em quase todo Caribe, os biocombustíveis são a grande alternativa para resolver o dramático déficit energético de muitos países vítimas da estagnação e da dependência externa.

O segundo desafio é dar resposta ao problema do desemprego e da concentração de renda. A produção de biocombustíveis é capaz de gerar milhões de empregos, fixando o homem na terra e distribuindo a renda, sobretudo se, como prevê a legislação brasileira, a agricultura familiar for estimulada.

O terceiro é o de contribuir para a redução do aquecimento do planeta. Como combustível ou aditivo aos combustíveis fósseis o etanol e o biodiesel reduzem consideravelmente a emissão de poluentes na atmosfera.

O último desafio é o de assentar as bases para uma indústria de nova geração, sucessora da petroquímica, capaz de produzir materiais, medicamentos, adubos e alimentos para animais.

O exemplo brasileiro indica que é totalmente controlável o risco de que programas de biocombustíveis venham a contribuir para o aumento da fome no mundo. A fome não decorre da ausência de alimentos, mas da falta de emprego e de renda, que afeta um bilhão de homens e mulheres no planeta. Como lembra o sociólogo Emir Sader, hoje se produz alimentos suficientes para 12 bilhões de pessoas, o dobro da população mundial.

A experiência brasileira mostra também que as terras destinadas à produção de matéria-prima para o etanol e o biodiesel não são próprias para o cultivo de alimentos. Menos de um quinto dos 320 milhões de hectares de terra arável do país é hoje cultivado. Desse total, apenas 1% se destina à cana, ou seja, 65 vezes menos que os milhões de hectares de pastos degradados onde esse cultivo vem se expandindo. É falta de conhecimento dizer que o Brasil poderá transformar-se em um imenso canavial.

Não há qualquer risco para a Amazônia, região sabidamente desfavorável para uma agricultura com fins energéticos e onde o governo brasileiro logrou considerável redução do desmatamento.

É evidente que a produção global de biocombustíveis requer cuidados. É necessário selecionar oleaginosas cuja exploração para fins energéticos não venha acarretar elevação do preço de bens alimentares essenciais, como vem acontecendo com o milho. Diferentemente do que ocorre com a cana – sobretudo depois dos ganhos de produtividade resultantes de anos de pesquisas -, o milho não é adequado, econômica e socialmente, para a produção de etanol.

Os biocombustíveis não aumentam a dependência dos países pobres em relação aos ricos. Ao contrário, incidem positivamente sobre a balança comercial daqueles, diminuindo as importações e aumentando as exportações.

Finalmente, uma rigorosa certificação pública dos novos combustíveis pelos países produtores – que poderá ser objeto de acordos multilaterais – evitará danos à natureza e assegurará condições decentes de trabalho. Legislações nacionais, como no exemplo brasileiro, permitirão um equilíbrio entre a pequena unidade produtiva familiar e as grandes plantações.

Uma revolução energética está em curso. Ela não opõe biocombustíveis aos combustíveis fósseis. Ao contrário, propõe uma complementaridade entre os dois. Ela permitirá consolidar a América do Sul como a região de maior e mais diversificado potencial energético do mundo.

O diálogo deve substituir a confrontação e a única paixão cabível neste momento é em torno da unidade sul-americana e do bem-estar de seus povos.

MARCO AURÉLIO GARCIA é assessor especial de política externa do presidente da República.

(www.ecodebate.com.br) artigo originalmente publicado pelo O Globo – 13/04/2007