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Artigo

Testemunhas do caos, por Mike Davis

[O Estado de S. Paulo] O urso polar sobre bancos de gelo cada vez menores transformou-se no ícone do aquecimento global. Até aquelas pessoas da Casa Branca que ainda acham que a Terra é plana reconhecem que eles podem estar fadados à extinção, à medida que o gelo derrete e o Oceano Ártico se torna um mar aberto. Mas esse não é o único teatro da inequívoca mudança climática, nem os ursos polares são os únicos mensageiros da nova era de caos.

Consideremos, por exemplo, os ursos negros das Montanhas Chisos do Parque Nacional Big Bend do Texas. Eles podem ser também mensageiros de uma transformação ambiental nas áreas de fronteira tão radical como a que está ocorrendo no Alasca ou na Groenlândia. Numa caminhada a Emory Park, travei conhecimento com o antigo e inofensivo urso. As aparições de ursos são sempre mágicas e presumi que o encontro era uma afirmação de que existia área selvagem ainda incólume.

Na verdade, como soube no dia seguinte, o urso era um mojado – a prole de imigrantes sem documentos do outro lado do Rio Grande. Os ursos negros eram comuns nas montanhas Chisos quando a região era o reduto do Apache Mescalero e dos invasores Comanches, nos séculos 17 e 18. Porém os fazendeiros os caçaram implacavelmente até sua extinção, no início do século 20. Então, quase por milagre, no inicio da década de 80, eles reapareceram. Biólogos achavam que os ursos tinham migrado da Sierra del Carmen, em Coahuila, atravessando a nado o Rio Grande e cruzando os 60 quilômetros de deserto, até Chisos.

MIGRAÇÃO ÉPICA

Como os jaguares que voltaram a se estabelecer nas montanhas do Arizona nos últimos anos, os ursos negros são parte de uma migração épica da vida selvagem. Embora ninguém saiba porque os ursos e os grandes gatos seguem na direção do norte, uma hipótese é que eles estariam acomodando suas populações para um novo reinado de seca no norte do México e Sudoeste dos Estados Unidos.

No caso dos humanos a situação é clara: ranchos abandonados e cidades-fantasma em Coahuila, Chihuahua e Sonora testemunham a sucessão de anos de seca – que teve início na década de 80, mas assumiu uma intensidade no final dos anos 90 – que levou centenas de milhares de pessoas pobres da zona rural a trabalhar por salários miseráveis em Ciudad Juárez e em distritos de Los Angeles.

Em alguns anos, a “seca excepcional” engolirá planícies inteiras do Canadá até o México; em outros anos, as conflagrações nos mapas do clima serão arrastadas para a Costa do Golfo até a Louisiana. Mas os epicentros continuarão sendo as bacias dos rios Colorado e Grande, e o norte do México.

Por exemplo, em 2003 o Lago Powell abaixou quase 24 metros em três anos e reservatórios ao longo do Rio Grande se tornaram quase charcos de lama. No sudoeste, o inverno de 2005 foi um dos mais secos já registrados e em Phoenix não caiu uma gota de chuva em 143 dias. E em 2006 tanto Arizona como Texas registraram grandes prejuízos em termos de safra e gado por causa da seca (cerca de US$ 7 bilhões).

A seca persistente, como o gelo em derretimento, rapidamente reorganiza os ecossistemas e transforma paisagens inteiras. Sem umidade suficiente para produzir a seiva de proteção, milhões de acres de pinheiros são devastados por pragas. Essas florestas mortas, então, ajudaram a atiçar as tempestades de fogo que irromperam nos subúrbios de Los Angeles, San Diego, Las Vegas e Denver, destruindo também parte de Los Alamos. No Texas, os pastos também vêm queimando e à medida que o solo arável desaparece, os campos se transformam em deserto.

NOVO CLIMA

A mais recente e autorizada pesquisa conclui que essa não é simplesmente uma seca episódica, mas se tornou o novo “clima normal” da região. Num depoimento no National Research Council, em dezembro, Richard Seager, geofísico do Lamont Doherty Earth Observatory, da Universidade Columbia, alertou que os principais modeladores de clima vinham obtendo os mesmos resultados a partir dos seus supercomputadores. “De acordo com os modelos, no sudoeste um clima similar à seca dos anos 50 vai se implantar como o novo clima dos próximos anos ou décadas.”

A previsão é um subproduto do trabalho feito em computadores, a partir de 19 modelos separados de clima para o Quarto Relatório de Avaliação do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC). Embora o presidente Bush tenha aceito com reticência o alerta do IPCC, ele provavelmente não registrou a possibilidade de seu rancho poder, um dia, se transformar numa duna de areia.

Mas, como Seagar salientou em Washington, as simulações do IPCC apontam para algo bem diferente dos episódios de seca catalogados até agora. Inesperadamente, é o clima propriamente, e não apenas as suas perturbações, que está mudando. Resumindo, as terras áridas se tornam mais áridas e as terras úmidas mais úmidas.

Segundo Seager os eventos ligados à La Niña continuarão influindo nas chuvas, nas regiões de fronteira, mas se formados a partir de uma infra-estrutura mais árida poderão produzir os piores pesadelos para o Ocidente: secas como as que contribuíram para o colapso das complexas sociedades Anasazi, no Chaco Canyon, e Mesa Verde, no século 12. (Para tornar as más notícias dadas pelos supercomputadores ainda piores, uma aridez mais grave também é prevista para grande parte do Mediterrâneo e do Oriente Médio).

Porém, meros pronunciamentos científicos, e mesmo o estrondo dos 19 modelos climáticos unânimes, provavelmente não provocarão muita agitação nos campos de golfe de Phoenix, onde o estilo de vida luxuoso consome 400 galões de água per capita, por dia. Nem conterão as máquinas de terraplenagem preparando o terreno para as áreas suburbanas monstruosas de Las Vegas. Nem, apesar de um possível esgotamento do enorme Aqüífero de Ogallala, essa fonte de água subterrânea que passa por baixo de oito Estados nas Grandes Planícies, evitará que a população do Texas duplique até 2040.

IMBECILIDADE PERSISTENTE

Não obstante a enorme quantidade de propaganda em cima do “crescimento inteligente” e uso inteligente da água, os incorporadores do deserto continuam tratando os subúrbios do mesmo modo imbecil, ineficiente ambientalmente, que degradou o sul da Califórnia por gerações. O trunfo do sudoeste, onde reina a livre empresa, é que a maior parte da água guardada dentro dos sistemas do Rio Grande e do Rio Colorado ainda é direcionada para a agricultura.

Mesmo se hoje o “pico da água” vai e volta, a vastidão do deserto pode se sustentar a médio prazo acabando com o algodão e alfafa, enquanto os grandes plantadores vão continuar se mantendo ricos vendendo água subsidiada pelo governo federal para os subúrbios sedentos. Um protótipo desta reestruturação já é visível no Vale Imperial da Califórnia, onde San Diego vem comprando agressivamente direitos de água. Como resultado, um viajante dentro de um avião observará o recente aumento dos quadrados sem vida dentro do tabuleiro do Vale.

Para o futuro existe também a opção “Saudita”. Steve Erie, professor da Universidade da Califórnia, disse-me que os empreendedores imobiliários no deserto, na região do sudoeste e da Baixa Califórnia, estão confiantes de que conseguirão manter o “boom” populacional abastecido, com a conversão da água do mar. O novo mantra das agências responsáveis pelos recursos hídricos, naturalmente, é incentivar a conservação e a recuperação, mas empreendedores gananciosos estão olhando avidamente para o Oceano Pacífico e a alquimia da dessalinização, sem se preocupar com as conseqüências perniciosas para o meio ambiente.

À medida que a água se torna mais cara, o ônus dos ajustes ao novo regime passará para os grupos subalternos, como os agricultores, os pobres das áreas urbanas (que podem ver seus gastos com água subirem de US$ 100 para US$ 200 por mês) os pobres rancheiros (incluindo muitos americanos nativos) e especialmente as populações rurais em situação de risco no norte do México. Com efeito, o fim da era da água barata acentuará os já altos níveis de desigualdade racial e social na região, como também levará um número maior de imigrantes a arriscarem suas vidas nas travessias perigosas dos desertos da fronteira. Os políticos conservadores no Arizona e Texas ficarão ainda mais envenenados e enraivecidos etnicamente. O sudoeste dos EUA já está impregnado de um violento nativismo, que só pode ser descrito como um quase fascismo. Nessa fase de seca que deve chegar, essas poderão ser as únicas sementes a germinar.

Como Jared Diamon diz em seu livro Collapse, o antigo Anasazi não sucumbiu apenas à seca mas também ao impacto da inesperada aridez numa região excessivamente explorada, habitada por pessoas pouco dispostas a sacrificar seu “estilo de vida dispendioso”. Como último recurso, um comeu o outro.

Mike Davis é autor do livro recém-publicado ‘Buda’s Wagon: A Brief History of the Car Bomb’ e também de ‘Planet of Slums’

(www.ecodebate.com.br) artigo originalmente publicado pelo O Estado de S. Paulo – 08/04/2007
enviado pelo Fórum Carajás