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Artigo

Futebol da metade sul: o jogo da celulose, por Ana Paula Fagundes

[EcoDebate] A decisão sobre o futuro do Rio Grande tem sido tratada como uma partida de futebol por alguns do povo gaúcho. Uma situação cômoda, para quem acredita que deverá sempre existir vencidos e vencedores. Quem tem uma visão de mundo um pouco mais ampla percebe que o futuro do planeta e o destino econômico de uma região pertence a todos. A audiência pública realizada ontem (21/03/2007) demonstrou esta dicotomia que na realidade está sendo construída, com a ajuda da mídia, dos políticos e de alguns cientistas.

A pauta da Audiência foi mudada na última hora. Presidia a mesa um deputado que recebeu dinheiro da celulose, do seu lado outros. Deveria ser apresentado o Zoneamento feito pela FEPAM, mas apresentaram o trabalho realizado pela UCPel, através do Marcelo Dutra, da Schumacher (UFSM) e Fernando Alves(Emater). O de sempre. Bonitas palavras, fotos mostrando um sistema de cultivo que só é feito para cartão de apresentação, promessas de isenção científica e dinheiro da celulose nas pesquisas e instituições. A única voz que veio da mesa para salvar do desespero foi a do Milanez da AGAPAN, que sabiamente apresentou aspectos que não haviam sido tratados anteriormente, o que foi mal visto por parte da platéia. Em seguida falou a Caixa RS, Rogério Augusto Valau, deputados e após muita pressão nossa, falaram algumas pessoas da platéia.

O lugar para realização da Audiência mudou três vezes, de uma sala pequena, para outra maior e depois para o Saguão da Assembléia, o que resultou em um atraso de uma hora. Neste novo ambiente, a platéia se dividiu quase que como em uma partida de futebol, as comitivas vindas da metade sul, que se diziam representativas do povo, de um lado, os demais do outro. Sob outra ótica, quem mora na metade sul de um lado, quem mora em outras regiões de outro. Ambientalistas para cá, desenvolvimentistas prá lá. Palmas para um, palmas para outro. Ridículo.

A divindade do eucalipto foi mais uma vez enaltecida. Clamores pelo fim da fome e da pobreza da metade sul do estado. O projeto de monocultura com eucalipto, que “vai trazer 1,2 bilhões de reais para a região”, foi referido pelos presentes como a solução para a geração de emprego e fim da fome. A educação não foi citada. Olhares de agressão para os ambientalistas que, segundo o que lhes é informado recebem dinheiro de fora do país, ou vivem na metade norte, rica do estado e portanto tem sua vida garantida. Segundo o que parece pensam que os ambientalistas são todos magnatas que querem impedir que a metade sul se desenvolva. Um equívoco já de saída, pois não eram apenas ambientalistas que contestavam o modelo de desenvolvimento, mas pessoas, cidadãs comuns.

Teve gente que ficou impressionada quando eu disse, rompendo a opressão do microfone que tentava abafar a voz de quem estava na platéia, que eu era da metade sul. Como podia isto, se eu estava na “ala” dos ambientalistas? Então, no final da audiência, ocorreu um fato muito curioso. Um senhor que estava do outro lado das cadeiras, portanto parte da “ala” da metade sul, veio apertar a minha mão. O aperto forte era para que eu sentisse os calos de sua mão. Mão de agricultor. Parabenizei o seu trabalho digno e disse que desejava que houvessem mais agricultores.

Quando ele me convidada para visitar a sua propriedade em Capão do Leão, uma equipe formada por outros homens, interrompeu bruscamente o diálogo levando o senhor com eles. Reclamei, pois estávamos conversando e eles disseram para que eu retirasse à minha “não sei o quê”. Seria minha insignificância? Ao meu lugar de mulher que deve se calar? À burrice e ignorância? Chamei-os de machistas, o que foi respondido com um gesto obsceno. Uma amiga foi atrás da comitiva para pegar o endereço do senhor. O que foi obviamente impedido. A argumentação dada, foi que nós estávamos em um nível muito acima, que o senhor Gilnei, não poderia conversar conosco, pois ele era muito ingênuo. Ingenuidade ou verdadeira compreensão do mundo e de um mundo sedento por uma nova relação de respeito com a natureza?

Quem vive em contato com a natureza, compreende, ou está mais propício a compreender os ciclos da natureza, a ação de cada espécie, compreende que este modelo de plantação em larga escala que se utiliza erroneamente da palavra “florestamento” não é um bom negócio. No retorno pegamos um táxi, onde o taxista que já havia trabalhado com eucalipto, ria ao saber da argumentação de geração de emprego através dos plantios em larga escala. Dizia que ele não ia falar em espaços como aquele da Audiência, porque não tinha estudo, mas tinha a compreensão de que políticos são demagogos com os bolsos cheios de propina.

A noite uma notícia da Audiência apareceu no jornal da TVE. Apareceu na reportagem que os ambientalistas estavam divulgando uma lista da bancada da celulose, onde deputados receberam dinheiro das empresas, o que foi ótimo. Os telespectadores não entenderam que o Harter (que presidia a mesa) e o Berfran receberam dinheiro, mas ao menos foi tocado no assunto. Sob a ótica da partida, o time a favor foi maior, três a dois. A última palavra foi dada pelo Berfran dizendo que há espaço para o “florestamento”. O que eles não dizem é que este “florestamento” é concentrador de terras e não aquelas imagens bonitinhas que a Emater apresentou de agrosilvicultura com gado. O “florestamento” que eles pregam são os 150 mil hectares de terras comprados ilegalmente pela Stora Enso na fronteira Oeste, é a morte de índios, é ilusão para o povo. Com a demagogia de que vão acabar com a fome, aumentam a exclusão.

Quem trabalha em instituições públicas, deveria ter o compromisso ético de fazer um trabalho para o bem público. Quem vive em uma região deveria exigir a participação nas decisões, mas o individualismo crescente não vê o mundo da mesma forma. Ambientalistas, cientistas e pessoas autônomas não estão recebendo dinheiro para exercer sua cidadania e seu trabalho comprometido com o bem comum. Infelizmente alguns políticos e técnicos das Universidades tem recebido dinheiro da celulose. A última palavra na mídia e nas decisões tem sido a que beneficia aos grandes negócios. O povo deve ficar acomodado como boiada.

Nenhuma mãe deseja que sua filha ou filho prostitua-se para matar a fome. O dinheiro que hoje aparentemente representa uma grande cifra, de bilhões, em pouco tempo representará nada. A perda do solo fértil da metade sul, perda da água, perda do alimento e da vida gerados pela biodiversidade, o desequilíbrio ecológico, nada disso será pago por dinheiro algum. Este bilhão de hoje vem de cofre público, como o BNDES, pode e deve ser destinado para outras alternativas econômicas compatíveis com a região.

As pessoas mais humildes não são escutadas, ou são escutadas se falarem o que interessa para o capital. A presença do senhor Gilnei era interessante para vender uma idéia, mas ele não poderia falar conosco. Nós aqui e vocês ali, “se aparta”, disseram. È luta de anjos contra demônios? Somos os demônios? Somos contagiosos? Se somos contagiosos, quem me dera que a doença do ambientalismo, do consumo com verdadeiro respeito a natureza, se espalhe como uma epidemia por este mundo afora!

Ana Paula Fagundes, bióloga [Visite e contribua com o site: www.defesabiogaucha.org]

in www.EcoDebate.com.br – 07/04/2007