Pacote Ecológico de Crescimento (4): Energia Elétrica, por Rogério Grassetto Teixeira da Cunha
[Correio da Cidadania] Nas últimas semanas, venho desenvolvendo nesta coluna uma idéia provocativa, a de um Programa Ecológico de Crescimento, ou PEC. A intenção é estimular a discussão sobre alternativas ao PAC anunciado em janeiro pelo governo federal, que permitam atingir objetivos semelhantes, mas sem a extensão de danos ambientais que o plano oficial certamente acarretará. Até aqui, mostrei que uma combinação de três tipos de fontes renováveis de energia elétrica (eólica, solar e biomassa) seria mais do que suficiente para se atingirem as metas presentes e futuras do programa oficial, trazendo de quebra uma série de outros benefícios, e não só econômicos.
Mas ainda há mais opções, solenemente ignoradas pelos políticos e técnicos do governo, que se preocupam apenas com a construção das mega-usinas hidrelétricas na região amazônica, e outras no resto do país, que seriam muito danosas a ecossistemas locais (como a usina Pai Querê no Rio Grande do Sul, que destruirá porção significativa do ecossistema de florestas de araucária, já extremamente fragilizado).
Uma outra fonte de energia renovável é a produção de biogás, o qual contém metano (um parente do gás de botijão) em sua composição e pode ser utilizado diretamente para queima, economizando-se outras formas de energia (entre elas a elétrica), ou indiretamente, alimentando geradores de energia elétrica. O biogás pode ser produzido a partir de diversos tipos de resíduos que contenham matéria orgânica, os quais são digeridos por micro-organismos dentro de certas estruturas (os biodigestores), que impedem a entrada de oxigênio, estimulando assim a produção de metano.
Como fonte de matéria orgânica, pode-se aproveitar, por exemplo, dejetos de animais criados em confinamento, como suínos, aves e gado leiteiro. Pela dificuldade de acumular-se a quantidade de resíduos necessária para produção de gás suficiente para alimentar uma termelétrica, o aproveitamento dar-se-ia em nível local, economizando-se energia de outras fontes, além de resultar em claras vantagens ambientais, dado o enorme potencial poluidor de dejetos animais.
Os biodigestores podem também ser alimentados com esgoto doméstico. Um estudo realizado pelo Centro Nacional de Referência em Biomassa da USP (Cenbio) estima que todos os efluentes líquidos da Grande São Paulo permitiriam gerar uma potência de 20 megawatts (milhões de watts – MW), o suficiente para as necessidades de uma cidade de 40 a 300 mil habitantes, dependendo do nível de consumo. O potencial energético deste tipo de fonte pode não ser muito significativo em termos absolutos, mas, se extrapolarmos estes valores para as grandes metrópoles brasileiras, este valor certamente aumentaria, além de ser um destino muito mais nobre para os dejetos humanos do que o despejo por aí, in natura ou tratado. Neste caso, obtém-se energia limpa e renovável ao se atacar o grave problema de saneamento ambiental.
Mais: diversos efluentes industriais podem também ser tratados com biodigestores, principalmente do setor de alimentos e bebidas. Para se ter uma idéia do potencial, outro estudo elaborado pelo Cenbio calculou que o tratamento de resíduos apenas das cervejarias brasileiras permitiria a geração de uma potência de 20 MW. Já dava para gelar um bocado da bebida que produzem.
O biogás pode ainda ser produzido a partir do vinhoto, o resíduo tóxico das usinas de álcool e açúcar. E aí temos um potencial bem mais significativo. Um estudo apresentado em um congresso realizado em 2006 na UNICAMP mostrou que, com a produção da safra 2004/2005, o potencial estimado era de geração de 645 MW, se o gás fosse usado para movimentar usinas termelétricas. O custo de implantação do sistema ainda é elevado, mas pode ser incentivado tanto pelo mercado de créditos de carbono, quanto por ações de governo.
Outra forma de obter-se gás metano é a partir de aterros sanitários, em cujo interior existem condições de falta de oxigênio que induzem a sua produção a partir da decomposição da matéria orgânica presente no lixo. Um estudo feito pela ESALQ-USP mostrou que pode haver um potencial de aterros sanitários no Brasil até 2010 de quase 315 MW em um cenário conservador e perto de 390 MW em uma perspectiva otimista. O custo estimado do MW pelo estudo ainda era relativamente alto, mas devemos lembrar que o investimento não é só energético, mas também de saúde pública, além de levar à redução de emissões de gases do efeito estufa.
Para completar o rol de opções, temos uma fonte renovável de energia cujo aproveitamento ainda está no estágio experimental ou feito de forma incipiente: o mar. Em tese, pode-se aproveitar a energia gerada por diversos movimentos marítimos, como a subida e descida das marés, o fluxo das correntes ou o movimento das ondas. Segundo Segen Estefen, pesquisador do COPPE (Coordenação dos Programas de Pós-graduação de Engenharia) da UFRJ, o litoral brasileiro poderia suprir até 15% da demanda de energia elétrica do país.
O investimento em novas tecnologias como esta é interessante, pois tem que ser feito em paralelo com o estímulo à pesquisa, parte crucial do desenvolvimento de qualquer nação, e que pode vir a viabilizar tecnológica e economicamente estas opções, no caso de elas serem caras. No começo da implantação do programa do Pró-Álcool no Brasil também havia muitas dificuldades e obstáculos práticos e tecnológicos. O tanto que avançamos no assunto deveria por si só ser argumento suficiente para o investimento em tantas formas de energia alternativas quantas fossem possíveis.
Em todos os casos analisados nesta série de artigos, há um outro ganho adicional. O fato de a geração de energia ser distribuída, ao invés de estar centralizada em poucos locais, diminui os gastos com transmissão. Só para a construção de mais de 4.700 Km de linhas de transmissão na região Norte, parte das quais para interligar as usinas que serão construídas no meio da Amazônia com o restante da rede, o PAC prevê gastos de R$ 5,4 bilhões. Com o investimento em outras fontes energéticas renováveis, este valor cairia significativamente.
Pois bem, até aqui analisei somente alternativas em termos de oferta de energia elétrica. Porém, há dois tipos de ação que ainda podem ser feitos para entrar na equação energética. Uma delas diz respeito à revitalização de usinas e a melhorias nas linhas de transmissão. De acordo com um estudo elaborado na USP em 2001, com a repotenciação de 67 usinas antigas no Brasil, poderíamos adicionar mais de 11 mil MW de potência, quase tudo o que o PAC planeja acrescentar até 2010. O custo estimado da adição de parte deste potencial (mais de 8 mil MW): R$ 5,4 bilhões, menos de 10% dos gastos planejados pelo PAC para o setor (R$ 78,4 bilhões) e exatamente o valor a ser gasto com as onerosas linhas de transmissão que serão construídas na região Norte por optar-se por construir hidrelétricas nos confins do Brasil. E isto sem construir nada de novo, sem alagar nada que já não esteja alagado, sem gastar com novas linhas de transmissão, sem novos impactos ambientais.
A revitalização pode ocorrer também com pequenas centrais hidrelétricas (PCHs), aquelas com potência instalada menor que 10 MW, muitas das quais encontram-se até mesmo desativadas. O mesmo estudo cita que a repotenciação de 600 PCHs em operação poderia adicionar 200 MW à potência instalada no Brasil em curto espaço de tempo, enquanto que a reativação de aproximadamente 600 unidades adicionaria outros 120 MW.
O segundo tipo de ação faria parte do planejamento do crescimento do país. Já que o governo propôs-se a desonerar fiscalmente alguns setores industriais com o PAC, poderia muito bem escolhê-los com base na relação entre seu consumo energético e a renda e o número de empregos que gera. Quanto maior o número de empregos gerados por unidade de consumo de energia, maior poderia ser a desoneração. Desta forma, o planejamento estaria incentivando aqueles setores que melhor fizessem uso da energia, em termos de alavancar a renda do país.
Semana que vem deixamos a energia para passarmos a outro assunto do PEC: transportes.
Rogério Grassetto Teixeira da Cunha, biólogo, é doutor em Comportamento Animal pela Universidade de Saint Andrews.
E-mail: rogcunha@hotmail.com
(www.ecodebate.com.br) artigo originalmente publicado pelo Correio da Cidadania, dirigido por Plínio de Arruda Sampaio, ed. 543. Enviado pelo autor.