Pacote Ecológico de Crescimento(3): Energia Elétrica, por Rogério Grassetto Teixeira da Cunha
[Correio da Cidadania] Nas últimas duas semanas, venho tentando mostrar que é possível atingir os objetivos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) com medidas que não fossem tão negativas ao meio ambiente como as apresentadas pelo governo federal. Batizei esta tentativa de Programa Ecológico de Crescimento, ou PEC. Obviamente, dentro do espaço e do tempo de que disponho, não pretendo que as idéias aqui apresentadas sejam definitivas, mas apenas mostrar que soluções alternativas são ao menos tecnicamente possíveis e podem ser economicamente viáveis.
Principiei a análise por uma das questões sobre as quais mais se tem discutido ultimamente, a da energia elétrica. Nos dois artigos anteriores, mostrei que poderíamos suprir boa parte ou todos os objetivos do PAC neste setor com fontes eólicas, solares (seja em conversão direta para energia elétrica, seja economizando-a com o uso do aquecimento solar de água), ou combinando-se as duas. Mas as possibilidades não param por aí. A energia solar pode ainda ser aproveitada de forma indireta, através de biomassa (a geração hidrelétrica e a eólica também usam a energia solar indiretamente). E como funcionaria isto?
Bem, todas as plantas usam energia solar para crescer e produzir suas flores, frutos e sementes. Para isto, elas se utilizam da fotossíntese, uma série de reações químicas que produzem matéria orgânica (glicose) rica em energia a partir de gás carbônico e água. A luz solar é imprescindível, pois fornece a energia necessária para que as reações ocorram. Desta forma, a fotossíntese fixa a energia solar em matéria orgânica vegetal, ou biomassa. E há diversas formas de aproveitar-se esta fixação de energia para mover máquinas. Uma delas é bastante familiar aos brasileiros, a produção de álcool combustível a partir da cana-de-açúcar. O biodiesel, cuja produção está sendo incentivada pelo governo, é outra maneira.
E quanto à geração de energia elétrica, tema deste artigo? Aqui também há diversas formas de aproveitar-se a energia da biomassa. Uma delas, que vem crescendo no Brasil, é o aproveitamento do bagaço de cana que sobra da produção de álcool e açúcar (ou outro subproduto vegetal no caso de outras culturas) como combustível para usinas termelétricas, além de ainda aproveitar o calor gerado para outras aplicações industriais dentro da usina (sistema denominado de co-geração, por simultaneamente produzir calor útil e eletricidade). A palavra termelétrica costuma suscitar calafrios nos ambientalistas (e com razão), devido à produção de gases do efeito estufa. Mas, se a usina é movida pela energia de biomassa produzida a partir de plantas cultivadas, o resultado da conta final das emissões é zero, pois a quantidade de gás carbônico gerado pela queima é a mesma que foi absorvida durante o crescimento da planta (ou que será utilizado pelo próximo ciclo, como queiram).
Um trabalho apresentado em 2004 pela empresa Koblitz mostrou que no Brasil ainda havia um potencial de produção de 12.000 megawatts (milhões de watts – MW) com co-geração usando-se bagaço de cana, mais 3.000 MW com resíduos de madeira, 350 MW com casca de arroz e 1000 MW com outros produtos, numa conta final de 16.350 MW. Mesmo supondo-se que estas estimativas tenham sido excessivamente otimistas e descontando-se os vários novos projetos que foram implantados de 2004 para cá, imaginemos que podemos ter um potencial ainda da ordem de 8000 MW, o que significaria cerca de 2/3 do que o PAC planeja ofertar até 2010 ( 12.300 MW). Mesmo aceitando-se as estimativas mais conservadoras do Ministério das Minas e Energia, de que haveria um potencial economicamente viável de 1.700 a 3.800 MW, ainda assim representaria uma porcentagem relevante dos objetivos (lembremos que, com o plano nacional de biodiesel, pode haver um incremento na geração de resíduos agroflorestais). Melhor ainda: como benefícios extras da co-geração, há ainda a possibilidade de comércio de créditos de carbono.
Mas falávamos que há várias maneiras de aproveitar-se a biomassa. Uma outra, menos considerada, seria a utilização de óleo vegetal e de coquinhos de palmeiras, como o babaçu, tão abundantes em áreas desmatadas da Amazônia, em usinas termelétricas de forma semelhante ao que é feito com o bagaço. De acordo com estudo feito na UNICAMP, poderiam ser produzidos até 260 MW (pelo sistema de co-geração) somente com as cascas de babaçu que já são jogadas fora anualmente. É pouco em termos absolutos, mas temos aqui um imenso potencial inexplorado, que já foi analisado por Rodolfo Salm neste jornal há cerca de quatro anos (“Exploração de palmeiras Attalea: uma alternativa para a crise energética”, Edição nº 341).
Resumindo, o interessante é que podemos utilizar áreas já desmatadas e degradadas na Amazônia, ou até mesmo em outros locais do Brasil, para o plantio de palmeiras, como babaçu, inajá, tucum, dendê ou várias outras que produzam grande quantidade de biomassa e sementes oleaginosas, já que elas se adaptam bem a este tipo de ambiente. Na verdade, muitas vezes sequer é necessário plantá-las, basta que não sejam combatidas, dado o sucesso de sua propagação natural nos pastos. Como as áreas alteradas na região amazônica já somam pelo menos 20 milhões de hectares (muito mais no país como um todo), com tal plantio, poderíamos obter uma enorme quantidade de óleos vegetais (que poderiam ser utilizados tanto no plano nacional de biodiesel quanto na geração de energia elétrica e alimentação) e subprodutos. E ainda teríamos as vantagens adicionais de empregar um maior número de pessoas (pois a coleta é manual no caso do babaçu), de utilizar áreas que estão degradadas e inclusive de recuperar algumas delas para voltarem a ser florestas, pois as palmeiras prestam-se muito bem para acelerar esta tarefa, que demoraria muito tempo para ocorrer naturalmente conforme o grau de estrago que tenha sido feito.
Com os elevados valores de investimento do PAC no setor elétrico (R$ 78,4 bilhões), acredito que poderíamos fazer muito na área da biomassa. Algumas possibilidades que imagino são: estímulos fiscais a usinas sucro-alcooleiras e outras agroindústrias ou processadoras que implantem projetos de co-geração; estímulo à produção de palmeiras nas áreas comprovadamente já degradadas por meio de financiamentos, assentamentos (mas com acompanhamento rigoroso e auxílio técnico) e isenções fiscais a pequenas propriedades; viabilização da produção de palmeiras em alguns locais por meio de infra-estrutura adequada; estímulo à modernização às quebradeiras de coco de babaçu, para aproveitarem o potencial energético dos resíduos descartados. Não nos esqueçamos também que o governo pretende ainda investir cerca de R$ 179 bilhões no setor de petróleo e gás natural, fadado à extinção, seja em 30, 50 ou 100 anos, e que parte deste dinheiro poderia ser muito melhor aproveitado se investido nas fontes analisadas nesta série de artigos.
Todas as fontes alternativas (incluindo as que não considerei – pequenas centrais hidrelétricas, produção de metano em biodigestores ou a partir de lixões, energia geotérmica) possuem ainda benefícios extras, tais como uma maior quantidade de empregos gerados, fixação do homem no campo, estímulo à produção tecnológica e à pesquisa nacionais, comércio de créditos de carbono e recuperação de áreas degradadas. Neste quadro, é realmente desalentador a escassa criatividade do PAC real, ao focar principalmente as soluções simplistas de sempre, encher nossos rios já saturados de usinas de uma quantidade ainda maior delas e depositar as maiores esperanças nas gigantescas usinas na região amazônica, que terão conseqüências sociais e ambientais previsivelmente catastróficas. Não foi para isso que lutamos pela redemocratização deste país.
Errata: no primeiro artigo da série, afirmei que os investimentos para se obterem os 12.300 MW planejados pelo PAC até 2010 apenas com fontes eólicas seriam de R$ 12,3 bilhões, quando, na verdade, pela base de cálculo utilizada, seriam de US$ 12,3 bilhões, ou, aproximadamente, R$ 24,6 bilhões.
Rogério Grassetto Teixeira da Cunha, biólogo, é doutor em Comportamento Animal pela Universidade de Saint Andrews.
E-mail: rogcunha@hotmail.com
(www.ecodebate.com.br) artigo originalmente publicado pelo Correio da Cidadania, dirigido por Plínio de Arruda Sampaio, ed. 542. Enviado pelo autor.
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