Pernambuco e as águas do rio São Francisco, por João Suassuna
[EcoDebate] Em outubro de 1998 editamos um artigo no Portal da Fundação Joaquim Nabuco intitulado “Água no Semi-árido nordestino: contradição nas ações de uso”, no qual, entre outros assuntos, enfocamos os problemas da oferta hídrica em Pernambuco e a desarticulação existente entre as principais instituições (estadual e federal) responsáveis por estas questões no estado. Além do mais, mostramos o baixo potencial de oferta de água em seus reservatórios, resultado da inexistência de condições naturais, principalmente de boqueirões, fator topográfico indispensável na construção de grandes represas. O resultado de tudo isso é que, em termos da capacidade de acumulação de água em superfície, Pernambuco possui um potencial de apenas 3,4 bilhões de m³, distribuídos em 132 represas de porte médio.
Somados a este manancial, o estado dispõe do aqüífero Jatobá, que abastece os municípios de Arcoverde, Ibimirim e Sertânia e de uma fronteira molhada com o rio São Francisco, de aproximadamente 500 km, a qual já vem sendo explorada sistematicamente, com a adução de suas águas para Araripina (adutora do Oeste) e Salgueiro (adutora de Salgueiro), municípios estes pertencentes a bacia do rio. Nestas aduções, as tubulações utilizadas obedecem a um determinado dimensionamento (70 cm de diâmetro) capaz de satisfazer ao abastecimento das populações daqueles municípios do sertão pernambucano (a adutora de Araripina abastece os municípios de Ipubi, Ouricuri, Santa Cruz, Santa Filomena e Trindade e a adutora de Salgueiro abastece os municípios de Parnamirim, Serrita, Terra Nova e Verdejante), com uma vazão de 0,5 m³/s.
Em setembro de 2001 editamos outro artigo, intitulado “Transposição de águas do rio São Francisco: planejar é preciso”, no qual fizemos um longo relato sobre as questões sanfranciscanas, ressaltando a necessidade de se proceder ao planejamento quando do tratamento de ações estruturadoras no Nordeste brasileiro. Nele evidenciamos a situação preocupante no fornecimento de água das populações da Paraíba e de Pernambuco, estados considerados campeoníssimos na baixa oferta hídrica da região, cabendo a este último uma oferta de 1.320 m³, para cada um de seus habitantes, por ano (a ONU estabelece, como situação mínima para não se ter um quadro de escassez hídrica crônica, 1.000 m³/pessoa/ano).
A rebuscada desses artigos teve como propósito mostrar que, apesar de o Nordeste vir apresentando, há décadas, problemas de abastecimento de suas populações, o principal problema da região, na nossa ótica, não é de escassez hídrica propriamente dita e sim de distribuição das águas que já existem na região. Inúmeros trabalhos técnicos desenvolvidos no Nordeste do Brasil apontam a existência de volumes de águas acumulados nesta região mais do que suficientes para promover o desenvolvimento e dar uma qualidade de vida digna ao seu povo. Portanto, no nosso entendimento, o que falta no Nordeste é uma política coerente de uso de suas águas, tendo em vista a existência de volumes suficientes ao atendimento de suas necessidades.
Alheio a tudo isso, o governo federal vem insistindo no discurso de que não há garantia hídrica no Nordeste, o que tem resultado em propostas de grandes projetos de engenharia, a exemplo do polêmico projeto de transposição do rio São Francisco, os quais, ao contrário do que muita gente imagina, visam, prioritariamente, o uso das águas no agro-negócio (irrigação, uso industrial, criação de camarões, entre outros). Isso é fácil de perceber, porquanto a Ceará Still, siderúrgica em construção no porto de Pecém, no Ceará, está sendo projetada para demandar volumes de água equivalentes ao consumo de uma cidade de 90.000 habitantes; as fazendas de carcinicultura (criação de camarões) do Rio Grande do Norte são outro exemplo de grande consumo, chegando a demandar vazões de cerca de 8 m³/s e o dimensionamento dos canais previstos no projeto de transposição (medem 25 m de largura, 5 m de profundidade, 700 km de extensão e vazão de até 127 m³/s), dão provas de que as águas do rio serão utilizadas com fins econômicos.
A nossa maior preocupação restringe-se às possibilidades de um colapso iminente do rio, caso venham a ser efetivadas essas novas demandas, por representarem volumes além daqueles que o rio tem condições de ofertar. Lembramos que o Velho Chico é um rio de múltiplos usos e que já está operando em regimes críticos. O nordestino não pode apresentar-se desmemoriado com relação ao que ocorreu no ano de 2001, período no qual a região passou pela mais séria crise energética vivenciada na sua história, em virtude de o rio ter corrido com pouca água.
Na nossa ótica, o potencial hídrico do Nordeste, principalmente aquele localizado em suas principais represas, possui a garantia necessária ao abastecimento de sua população, inclusive com o acesso mais barato, se comparado ao praticado nas faraônicas obras de engenharia propostas pelo governo federal.
Mas, mesmo com a garantia da água para o atendimento das necessidades das populações, reconhecemos, na região, a existência de bolsões que apresentam extrema dificuldade de abastecimento, motivada, na maioria das vezes, pela pobreza espacial de mananciais e, conseqüentemente, da dificuldade de acesso à água. Em tais casos, aportes hídricos externos, para a solução desses problemas, quando bem planejados, são bem-vindos.
No tratamento desses aportes, algumas questões têm que ser observadas: em primeiro lugar, não existe em nenhum local deste país a informação de que é proibido o uso das águas do rio São Francisco, fora de sua bacia hidrográfica, para fins de abastecimento humano e animal. Ao contrário, nesses casos, a limitação do uso das águas do rio São Francisco prende-se, única e exclusivamente, ao fim econômico. Se praticada, a atividade é considerada ilegal.
A Lei Federal 9433/97 (Lei da Águas) fixou os fundamentos da política nacional dos recursos hídricos, e em seu artigo 38 estabeleceu a competência do Comitê da Bacia Hidrográfica do rio São Francisco, dando-lhe, entre outros poderes, o de aprovar e acompanhar o plano de recursos hídricos da bacia do rio. Nesse sentido, coube ao referido Comitê, a elaboração do plano decenal de suas águas, o qual autorizou o seu uso, em áreas fora da sua bacia (águas de transposição), apenas para o abastecimento humano e dessedentação animal, isso em caso de comprovada escassez.
Se existem bolsões no Nordeste com problemas extremos de abastecimento, e se existe a possibilidade de se resolverem esses problemas usando as águas do rio São Francisco, valendo-se da força da legislação em vigor e com os cuidados devidos, porque não fazê-lo?
O pressuposto de que o Nordeste brasileiro possui muita água, de que seus mananciais têm garantias hídricas para o abastecimento das populações e que seu acesso é mais barato, foi confirmado pelo próprio governo, ao publicar, por intermédio da Agência Nacional de Águas – ANA, o Atlas Nordeste para abastecimento urbano de água. Nele, é possível se proceder à análise hídrica de demandas e de ofertas da região (superficiais e subterrâneas), bem como traçar alguns diagnósticos e prognósticos dos sistemas existentes, incluindo: análises de criticidade, propostas de soluções técnicas e as necessidades de investimentos para a realização das obras de infra-estrutura, visando o abastecimento das populações.
Nesse trabalho da ANA, há citação de escassez hídrica nas regiões agrestes dos estados da Paraíba e de Pernambuco, conforme mencionamos neste texto (existência de bolsões), com possibilidade de ser solucionada com adução de águas do rio São Francisco.
Roberto Malvezzi, o Gogó, procedendo análise comparativa dos benefícios a serem alcançados pelo projeto da Transposição do rio São Francisco e pelo trabalho da ANA, chegou a seguinte conclusão: com a metade dos recursos financeiros previstos no projeto de transposição, é possível beneficiar, pela proposta da ANA, em termos de abastecimento das populações, um número quase três vezes maior de pessoas (a transposição prevê o benefício de 12 milhões de pessoas, enquanto o Atlas prevê o benefício de 34 milhões). Ainda segundo Gogó, a ANA, de forma minuciosa, elaborou esse trabalho, indicando a forma alternativa para solucionar o problema hídrico de 1.112 municípios acima de 5 mil pessoas em toda a região, além de ter sido a primeira instituição governamental a declarar, explicitamente, as intenções do governo em utilizar as águas da transposição para o agro-negócio.
Diante desses argumentos contraditórios (utilização da água do rio São Francisco para fins de agro-negócio versus utilização para fins de abastecimento), qual seria a alternativa mais meritória para a solução dos problemas de abastecimento das regiões agrestes dos estados da Paraíba e de Pernambuco, conforme preconizado no Atlas da ANA?
Para responder a esse tipo de indagação, é importante que o leitor fique esclarecido sobre os equívocos conceituais que, corriqueiramente, são cometidos entre os termos Recalque e Transposição de águas em bacias hidrográficas.
Recalque nada mais é do que o transporte (adução) de água para locais distintos existentes na própria bacia de um rio. O melhor exemplo que podemos dar neste sentido, é o que está ocorrendo em Pernambuco, com o abastecimento de Araripina e Salgueiro com as águas do rio São Francisco, por intermédio das adutoras do Oeste e de Salgueiro. Tais municípios fazem parte da bacia hidrográfica do rio São Francisco e, portanto, as águas para ali destinadas poderão ser usadas também com fins econômicos.
Já a possibilidade de se proceder ao abastecimento do município de Gravatá (município pernambucano de reconhecida escassez hídrica, localizado na região agreste e pertencente a bacia do rio Ipojuca) com as águas do rio São Francisco, é considerada uma transposição de águas, pelo simples fato deste transporte (adução) acontecer para um município localizado fora dos limites da bacia do rio São Francisco. Portanto as águas ali destinadas, por força de Lei, só poderem ser utilizadas no abastecimento humano e dessedentação animal.
Diante dessas explicações, entendemos que a solução da escassez hídrica das regiões agrestes da Paraíba e Pernambuco poderá ser determinada, por intermédio da adução de águas do rio São Francisco (transposição), aproveitando, inclusive, a experiência de abastecimento que o estado Pernambuco já detém, com adutora dimensionada para satisfazer as necessidades de abastecimento humano e animal daquelas regiões.
Procedendo-se dessa forma, os mega canais previstos no projeto de transposição do governo federal perderão o sentido de existir, pois serão substituídos por adutoras mais simples e eficazes, infinitamente mais baratas e com maior alcance social.
Recife, 26 de março de 2007.
João Suassuna – Eng° Agrônomo e Pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco
in www.EcoDebate.com.br – 27/03/2007
João Suassuna é colaborador e articulista do EcoDebate