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A rebelião da Água, por Marcelo Barros

[Adital] Só uma minoria da humanidade ficou sabendo que deste domingo 18 até a terça-feira, 20, reuniu-se em Bruxelas um encontro internacional de cidadãos e instituições públicas sobre um dos temas mais discutidos no planeta: a escassez da Água no mundo e sobre o direito da sociedade civil de garantir a administração da Água como bem público acessível a toda a humanidade. Desde 1972, quando ocorreu a Conferência da ONU sobre o meio ambiente em Estocolmo, a humanidade ficou sabendo que a água é um bem perecível e o mundo corre o risco de vê-la desaparecer. Em 1974, a comunidade internacional lançou o objetivo de “pobreza zero para o ano 2000” ou, como dizia Dom Helder Câmara, “o ano 2000 sem miséria”. Um dos objetivos era garantir que, no final da década internacional de ações que a ONU coordenava em favor da Água”, em 1999, a sociedade internacional garantisse água potável para todos os habitantes do planeta.

Estamos em 2007 e, ao contrário do que era prometido, 69 países do mundo começam a sofrer “o stress hídrico”, a falta d´água potável que tem como conseqüência a morte de milhares de crianças vitimadas por enfermidades provocadas por falta de água limpa e saudável. Não somente nenhum dos objetivos definidos em 1974 foi alcançado como, ao contrário, a situação de injustiça e desigualdade social piorou para os pobres do mundo. A ONU calcula que, no mundo atual, as pessoas que vivem com menos de um dólar por dia chegam a ser dois bilhões e oitocentos milhões, dos quais quase esta mesma cifra não tem acesso a serviços sanitários e um bilhão e meio não conta com água potável para viver.

Pela primeira vez, durante meses, as cachoeiras de Iguaçu não mostravam água corrente e rios importantes como o Amarelo, o Indu, o Colorado e o próprio Nilo ameaçam secar. É como se a própria água se rebelasse contra a crueldade de uma sociedade que para garantir o seu lucro e o conforto do seu estilo de vida consumista faz a própria Terra sofrer um aquecimento como nunca tinha sofrido na história, mudança climática que ameaça a própria vida no planeta.

À primeira vista, os latino-americanos podem pensar que este problema não lhes diz respeito porque nosso continente desfruta de uma situação hídrica boa. Basta lembrar que 20% da água de todo o mundo vem do rio Amazonas. Além disso, quatro dos 25 rios mais caudalosos do mundo – Amazonas, Paraná, Orinoco e Magdalena – são nossos. Entretanto, mesmo assim, algumas zonas do continente sofrem secas tão duras que 25% do continente é considerado árido ou semi-árido.

A cada 20 anos, a demanda mundial de água doce é duplicada e em um ritmo duas vezes superior à taxa de crescimento da população. Isso significa que a água diminui. E não só diminui sua quantidade, como a qualidade. Além de escassa, é contaminada. Quem pode, hoje, tomar água na torneira de nossas cidades? Infelizmente, o Brasil é dos países que menos lutam para evitar a contaminação da água. Muitos de nossos mais belos rios recebem forte contaminação química e industrial. Minas de ouro e garimpo derramam mercúrio em lagos e rios da região amazônica. Entretanto, os maiores contaminadores de água são as grandes indústrias de alta tecnologia e a agricultura industrial. Os sistemas de irrigação agrícola consomem entre 65 e 70% da água, principalmente para produzir alimentos para exportação. De 20 a 25% da água disponível são dedicados a fins industriais, entre eles a produção de chips de silício de alta tecnologia. Somente 10% da água são dirigidos para uso doméstico.

Sobre o uso doméstico da água, empresas multinacionais fazem tudo para assumir os serviços de abastecimento público de nossas cidades. São filiais das três principais corporações de serviços de água: as empresas francesas Suez e Vivendi e alemã RWE-Thames, que juntas fornecem serviços de água corrente e saneamento a 300 milhões de clientes em mais de 130 paises do mundo. Entretanto, cada vez mais a sociedade civil descobre que não pode entregar a água de nossos paises a nenhuma sociedade privada. Água é um bem público, direito fundamental de todo ser vivo e não deve ser privatizada nem mercantilizada.

Grupos ecológicos, movimentos sociais e entidades da sociedade civil falam da “rebelião da água” não só no sentido de que a água reage ao aquecimento do planeta e desaparece, mas também de que os movimentos sociais assumem a defesa da água e realizam no mundo todo um movimento de resistência e de protestos que tomam a forma de uma “rebelião da água” porque se faz em nome da água e para proteger o seu caráter sagrado e universal.

A primeira batalha desta “rebelião da água” se deu na Bolívia, quando, para renovar um empréstimo de 25 milhões de dólares, o Banco Mundial exigiu do governo boliviano que privatizasse a água. Quando o serviço de água de Cochabamba foi entregue à multinacional norte-americana Bechtel, o preço da água duplicou. Dezenas de milhares pessoas tomaram as ruas para protestar contra isso. Uma greve geral paralizou a cidade. A situação chegou a tal ponto que obrigou a Bechtel a fugir da Bolívia. No Uruguai, em plebiscito simultâneo às eleições presidenciais, o povo decidiu impedir qualquer forma de privatização dos serviços de água. O Chile, a Guatemala e o México vivem movimentos similares.

No Brasil, continuam os debates e manifestações contra a controvertida transposição do rio São Francisco, enquanto, no sul, empresas lançam poluentes no Aqüífero Guarani, reservatório de água subterrânea que percorre o sub-solo dos Estados do sul e grande parte da Argentina e Paraguai.

Apenas se encerrou o encontro sobre a água em Bruxelas, um fórum ecumênico sobre a água se realizará na próxima semana em Balmaceda, sul do Chile, uma região belíssima nos pés da cordilheira dos Andes, na qual a água começa a ser escassa. O dia internacional do cuidado com a Água que a ONU celebra no dia 22 de março vem nos recordar a responsabilidade de todos nós e de cada pessoa para salvar a água e proclamá-la como bem universal e direito de todos os seres vivos.

Marcelo Barros, monge beneditino e autor de 26 livros. mosteirodegoias@cultura.com.br

(www.ecodebate.com.br) artigo originalmente publicado pela Agência de Informação Frei Tito para a América Latina