Impostura verde, por Marcelo Leite
Já houve até evento fashion em que hedonistas voluntariam trocados para plantar árvores
[Folha de S.Paulo] Hoje em dia ninguém mais cita o filósofo Gilles Deleuze (1925-1995) em jornal -a não ser, talvez, para criticá-lo. Mesmo quem o conhece mal, porém, não deixará de reconhecer como é certeira sua caracterização do marketing como “a raça impudente de nossos senhores”. Em especial se topar com um anúncio da nova coleção de roupas Diesel.
Pessoas sensatas, em tempos normais, pensariam duas vezes antes de adquirir confecções de uma empresa que publica no Brasil anúncios inteiramente em inglês. Só que nosso tempo há muito deixou de ser normal. E o Brasil, todos sabem, nunca foi sério. Precisava carimbar a campanha com um “Global Warming Ready”, porém? Para quem não sabe, a frase quer dizer “pronto(a) para o aquecimento global”. Noutro lugar, anuncia-se que são roupas para permanecer “cool” (bacana, ou, literalmente, fresco) enquanto o mundo se aquece.
As imagens utilizadas são ainda mais loquazes. Numa delas, um rapaz de camisa aberta lambuza com filtro solar a garota em vias de trepar num coqueiro. Seria só a ração cotidiana de nonsense da publicidade de moda, não fosse pelo carimbo mencionado e por mostrar no fundo, à esquerda, o mar batendo no topo do que parece ser o monte Rushmore, nos EUA.
A face esculpida em pedra, com água pelo nariz, talvez seja a de Abraham Lincoln. Não aparecem na imagem as outras três do famoso monumento em Dakota do Sul: George Washington, Thomas Jefferson e Theodore Roosevelt. O quarteto de presidentes só se mostra por inteiro noutro quadro, em que um modelo sarado lê um livro com geleiras na capa, deitado na areia da mesma praia.
A mesma alusão à elevação do nível dos mares como resultado do aquecimento global surge num plágio deslavado do filme “O Dia Depois de Amanhã”. Em tela, arranha-céus de Nova York (Chicago?) com água na cintura.
Nesse álbum disparatado ainda há espaço para araras no lugar dos pombos da praça São Marcos em Veneza, vegetação equatorial ao lado da torre Eiffel e gente de biquíni ao lado de pingüins. Na Antártida, supõe-se. A publicidade não tem nem precisa ter compromisso com a realidade, sequer com a verossimilhança. Seu liquidificador de signos já nasceu pós-moderno. O que salta aos olhos são os sobretons frívolos para retratar uma questão de sobrevivência.
O aquecimento global virou moda, modismo. Já houve até evento fashion “carbon-neutral”, em que hedonistas compungidos voluntariam uns caraminguás para plantar árvores, não se sabe nem se quer saber onde. Peles de animais, contudo, voltaram a ser chiques. O mundinho é verde, ma non troppo. Ao final, todos montam em seus jipões 4×4 movidos a (muito) diesel e rodam superiores sobre o asfalto esburacado das metrópoles brasileiras. Os mais radicais se filiam a alguma ONG -com nome em inglês, claro.
Dá vontade de incorporar um “nerd” rápido. Lembrar que Dakota do Sul fica no meio dos Estados Unidos, onde o mar nunca vai chegar (não na escala de tempo que interessa à espécie humana). O monte Rushmore, aliás, está 1.745 metros acima do nível do mar, que deve subir só meio metro nos próximos cem anos, segundo a última previsão do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática). Quem é que quer saber de informação, no entanto? O negócio agora é ser “ambiental”. Qualquer dia desses nasce a grife Biodiesel. Lula vai a-do-rar.
(www.ecodebate.com.br) artigo originalmente publicado pela Folha de S.Paulo – 18/03/2007
enviado por Mayron Régis, colaborador e articulista do EcoDebate