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Artigo

As Águas de Marte, por Roberto Malvezzi (Gogó)

[EcoDebate] As fotos do oceano de água num dos pólos de Marte, congelada, mas com um filete brilhante que induz à pressuposição de água corrente, mais uma vez nos leva a perguntar sobre a possibilidade de vida no planeta tão vermelho, tão próximo, tão distante. Dizem os cientistas que se essa água fosse derretida, uma camada líquida de onze metros de profundidade envolveria toda superfície de Marte. Portanto, há água fora da Terra.

Nesse final de semana estive um encontro de agricultores no Vale do Apodi, Rio Grande do Norte, através dos amigos da CPT. Região bonita, vale verde, onde a imensa barragem de Santa Cruz armazena 600 milhões de m3 de água, quase transbordando. Para nada. A água não é utilizada nem para beber, nem para plantar. Ironia, Santa Cruz é uma das barragens preparadas para receber água da transposição do rio São Francisco.

Água por água, se não chegar ao povo, tanto faz em Marte, no São Francisco ou na barragem de Santa Cruz. O problema da água no Brasil é exatamente de distribuição e zelo. Os açudes do Nordeste têm capacidade para armazenar 36 bilhões de m3 de água, agora estão cheios, mas a pouca distância de suas margens – a exemplo de Santa Cruz – o povo não tem acesso à água sequer para beber. Ou então são mananciais poluídos, como os rios que cortam nossas cidades e campos agrícolas, águas inaproveitáveis e que nos agridem pelo mau cheiro e pelo visual opaco.

O Brasil tem dado alguns passos interessantes para melhorar nosso zelo pela água. A Agência Nacional de Águas (ANA) acaba de lançar 91 sugestões para melhorar a gestão da água em todo o país. No Nordeste, de forma minuciosa, fez o Atlas do Nordeste, indicando como solucionar o problema hídrico de 1.112 municípios acima de 5 mil pessoas em toda a região. Em nenhum momento cita a transposição. Essas obras para o meio urbano, aliadas às que a Articulação do Semi-árido (ASA) propõe para o meio rural, resolveriam os problemas de acesso à água para maior parte de nossa população nordestina. Mas o executivo se recusa em reavaliar sua posição e insiste em gastar dinheiro na transposição do São Francisco. Diz o pessoal do executivo federal que as obras são complementares e não antagônicas. Claro, José Machado, diretor da ANA, já disse o porquê: “a transposição tem finalidade econômica e nossas obras são para abastecimento humano”. Mas nossas leis priorizam o atendimento humano, não a finalidade econômica.

O reconhecimento da água como “direito fundamental da pessoa humana” continua embargado pelo governo, certamente atendendo a pedidos dos setores privados interessados no negócio da água. É a primeira vez na história que um governo brasileiro se opõe ao reconhecimento de um direito humano. Mas a luta continua através de ONGs, Igrejas e pastorais sociais.

Foi importante a elaboração também do Plano Nacional de Recursos Hídricos, sob a coordenação da Secretaria Nacional de Recursos Hídricos, autarquia vinculada ao Ministério do Meio Ambiente. Mas o Plano é indicativo, não normativo. Aí está seu limite. Operacionalizá-lo exige um esforço hercúleo da sociedade brasileira.

Por fim, o que tem mudado realmente é a consciência e a prática do povo brasileiro em relação à água. Continua a reflexão, mas também a luta prática, como o cuidado com o rio São Francisco, ou o trabalho de captação de água de chuva em todo semi-árido brasileiro, seja para consumo humano, seja para produção. Essa é a água que realmente tem chegado às casas de população nordestina. Agora, com o agravamento do aquecimento global, talvez seja quem realmente esteja se preparando para as conseqüências terríveis da mudança climática.

Continuamos naquela “paciência impaciente”, como dizia Paulo Freire, até que melhores águas caiam sobre o povo brasileiro e sobre todo o planeta Terra.

Roberto Malvezzi (Gogó) é Agente Pastoral da Comissão Pastoral da Terra – CPT e colaborador/articulista do EcoDebate

in www.EcoDebate.com.br – 20/03/2007