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Estudos reiteram que a invisível desigualdade brasileira não será resolvida apenas com crescimento econômico do país, por Carlos Haag

“Os pobres terão preferência no nosso governo. Eu tenho a convicção de que a solução para os problemas brasileiros não é mais fazer o povo sofrer com ajustes pesados, que terminam caindo em cima do povo; a solução está no crescimento da economia”, discursou o presidente Lula logo após se saber reeleito. “O conceito de classes, entre nós, ainda é percebido no registro economicista (que não percebe a construção cultural e simbólica da distinção social) do velho marxismo.

O progresso econômico é visto como panacéia para resolver problemas como desigualdade, marginalização e subcidadania. É uma crença fetichista, que faz esperar do crescimento a resolução de nossas questões sociais”, diz Jessé Souza, titular de sociologia da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Curiosa armadilha ideológica, pois Lula, ao defender soluções economicistas como estas, mesmo afirmando que “se você conhecer uma pessoa muito idosa e esquerdista é porque ela está com problema”, mostra que continua embalado por ilusões marxistas.

“O debate sobre a desigualdade brasileira tem sido travado sob o signo da fragmentação do conhecimento e da percepção da realidade. Criticar o economicismo, e o liberalismo que é a sua ideologia mais acabada, não significa não reconhecer a importância fundamental da economia e do mercado. Mas é preciso ir contra a leitura superficial e rasteira de um mundo complexo e desigual, como se a única variável fosse a econômica”, reitera o pesquisador, que acaba de publicar A invisibilidade da desigualdade brasileira e defender sua livre-docência sobre o tema na Universidade de Flensburg, na Alemanha.

“O livro é o primeiro resultado para a elaboração de uma ‘teoria da ação social’ para uma interpretação mais adequada sobre o Brasil contemporâneo que não perceba o marginalizado como alguém com as mesmas capacidades disposicionais de um indivíduo da classe média. Se assim fosse, o miserável e sua miséria seriam fortuitos, mero acaso do destino, sendo sua situação de privação reversível, bastando ajuda passageira e tópica do Estado para que ele possa andar com suas pernas. Essa, aliás, é a lógica das políticas assistencialistas nacionais que estão condenadas ao curto prazo e à miopia”, avalia. Uma cegueira que atinge o olho esquerdo e o direito.

“Os economicistas desconhecem que a reprodução de classes marginalizadas envolve a produção e a reprodução das precondições culturais e políticas da marginalidade. Por outro lado, a ‘glorificação do oprimido’ é a melhor maneira de reproduzir a miséria e o abandono indefinidamente”, critica. Em seus estudos, Jessé Souza vai na contramão do consagrado pensamento social brasileiro que sempre identificou as causas de nossas mazelas, em especial a desigualdade vista com total naturalidade, como um resíduo de nossas origens “pré-modernas”.

“A naturalização da desigualdade é mais adequadamente percebida como conseqüência, não de nossa herança pré-moderna e personalista, mas do fato contrário, como resultante de um efetivo processo de modernização ‘importado’ de fora para dentro”, nota. Logo, a desigualdade é invisível não porque é um resquício do passado, mas justamente por sua “impessoalidade”, típica dos valores e instituições modernos, o que, segundo o pesquisador, a faz opaca e de difícil percepção na vida cotidiana.

Teorias culturalistas, como as de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e mesmo Roberto Da Matta, tendem, segundo o pesquisador, a interpretar o brasileiro como um tipo homogêneo, que nos mostraria “mais calorosos e humanos” do que os indivíduos das sociedades avançadas. Essa “teoria emocional da ação” seria uma “fantasia compensatória” que entenderia os brasileiros como uma sociedade “integrada emocionalmente”, sem nenhuma divisão de classe, apenas se diferenciando na renda ganha por cada um.

Daí o progresso econômico tomado como a solução para todos os males. “Isso secundariza aspectos fundamentais e não-econômicos da desigualdade social, como a ausência de auto-estima, de reconhecimento social, de aprendizado familiar de papéis básicos, bem como a realidade da reprodução social de uma ‘ralé’, cujo substrato moral, político e social é diferente do da classe média”, observa. O pesquisador dá um exemplo prático: um europeu que atropela, por negligência, um cidadão pobre tem grandes chances de ser punido, inverso do que ocorre no Brasil. “Isso não significa que as pessoas não se importam. Mas o valor de um brasileiro pobre é comparável ao que se dá a um animal doméstico e o inquérito, mesmo aberto, daria em nada, por um acordo implícito entre os agentes envolvidos na situação.”

Não se pretende ver europeus “melhores” que brasileiros, mas entender, histórica e filosoficamente, dois desenvolvimentos diferenciados. Na origem está o ascetismo protestante weberiano, que revela a valorização do trabalho, da disciplina e da razão, vistos como elementos constituintes da “dignidade” cotidiana. “É o compartilhamento, no Ocidente, dessa determinada estrutura psicossocial o fundamento implícito do reconhecimento social que torna possível se falar em cidadania.” No caso brasileiro, o processo de “europeização” se dá pela importação, como artefatos prontos, das instituições do mundo moderno, como o mercado capitalista.

“A chegada ao Brasil da verdadeira Europa moderna do individualismo moral e do capitalismo é tardia e irá se contrapor diametralmente a um conjunto diverso de potentados rurais com pouca unidade entre si, uma sociedade visceralmente anti-individualista e antiigualitária”, nota. Nesse contexto, Jessé Souza usa o conceito de habitus (componente afetivo e emocional inscrito no corpo e nas manifestações espontâneas dos indivíduos, um tipo específico de socialização), de Bourdieu, para explicar as diferenças.

O “habitus primário” seria a capacidade de reconhecer o outro como igual pelo compartilhamento de uma mesma economia emocional e valorativa a partir do seu reconhecimento como membro útil da comunidade. Ao importar tardiamente a ideologia da Europa, o Brasil não consegue implantar aqui o “habitus primário” que permita o processo de equalização tanto da economia emocional como do processo de reconhecimento básico. Sem esse consenso intraclasses teríamos uma fragmentação interna do processo de reconhecimento social, que é fundamental para o exercício da cidadania. Cultivamos o “habitus precário”.

Mais terrível: essa diferenciação se desenvolve sob o véu da modernidade, que lhe confere um aspecto “opaco”, invisível e incomodamente “natural”. No Brasil não temos cidadãos que, em condições de relativa igualdade, lutam por uma chance de classificação social nas diversas esferas sociais de atuação que constituem segmentações secundárias com base no desempenho diferencial, como nos países centrais. “Entre nós existe uma segmentação primária que se reproduz molecularmente na vida cotidiana de forma opaca e impessoal, que separa ‘gente’ de ‘não-gente’. Um processo ‘moderno’ e eficaz.”

Diapasão – Esse mecanismo de naturalização da inferioridade faz parecer à própria vítima do preconceito (seja de classe, gênero ou cor) que seu fracasso é pessoal, merecido e justificável, nota o pesquisador. Nesse mesmo diapasão é possível repensar a questão cor/raça, visto como fator definitivo para a desigualdade, ação que, segundo Jessé Souza, “simplifica e confunde causas múltiplas e complexas em uma única”. O pesquisador é cético com afirmações de que a cor da pele e o fenótipo classificam e hierarquizam, por si sós, o acesso seletivo aos bens.

“Não seria talvez o processo resultante do abandono da população negra, de desestruturação da família, dificuldade de acesso à escola e à informação, o responsável pela efetiva desclassificação da população negra?” Ainda de acordo com ele, nesse caso, a cor seria mais um índice suplementar a indicar a “não-europeização”, em termos do “habitus primário”, do que a causa primeira da discriminação. “A cor da pele, nesse contexto, age como uma ferida adicional à auto-estima do sujeito, mas o núcleo do problema é a combinação de abandono e inadaptação que o atinge independentemente da cor da pele”, acredita. Assim, o “habitus precário”, embora o pesquisador ressalte a presença virulenta do preconceito racial, seria não “meramente a cor da pele”, mas certo tipo de “personalidade”, julgada como improdutiva e disruptiva para a sociedade como um todo.

“Como não compreendemos, seja no senso comum, seja na reflexão metódica, como funciona o ‘racismo da classe’ entre nós é que a raça passa a ser o único aspecto visível de nossa extraordinária desigualdade. Isso não nos impede de reconhecer a realidade do racismo de cor/raça que exige que se crie uma consciência de sua ação virulenta e mecanismos para o seu combate”, observa Jessé Souza. Para ele, esse tipo de pensamento, que enfatiza o dado secundário da cor (que permitiria, supostamente, atribuir a “culpa” da marginalização apenas ao preconceito), joga água no moinho da explicação economicista e evolucionista de tipo simples, que supõe ser a marginalização algo temporário, modificável por altas taxas de crescimento econômico, as quais, por algum mecanismo obscuro, acabariam por incluir todos os setores marginalizados.

“Da mesma forma a ‘escola’ pode ser a panacéia de dez entre dez economistas que escrevem sobre desigualdade, como se a ‘ralé’ já não chegasse perdedora na própria escola (quando tem escola) antes de começar. Diante da generalização geral liberal do economicismo, há que se compreender que a realidade social é estruturada em ‘classes sociais’, cujas chances são preestipuladas”, avalia. Como o “racialismo”.

“Esse percebe o preconceito como a causa principal da desigualdade brasileira, repetindo, de modo invertido, o obscurecimento que sempre foi o núcleo da importância da raça no Brasil: servir como ícone de integração, obscurecendo todos os outros conflitos, especialmente os de classe. Isso não nega o caráter perverso de nosso preconceito racial, apenas o contextualiza”, adverte o pesquisador, para quem esse seria o típico exemplo em que “a inércia toma o lugar de uma explicação”. A questão importante não é feita, como bem observa Chico Buarque em Brejo da cruz: “Mas há milhões desses seres/ que se disfarçam tão bem/ que ninguém pergunta/ de onde essa gente vem”.

(www.ecodebate.com.br) artigo originalmente publicado pela Revista Pesquisa FAPESP – Edição Impressa 131 – Janeiro 2007