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Artigo

Transposição: mentira de perna comprida…, por Ruben Siqueira e Andrea Zellhuber

[EcoDebate] O projeto de transposição de águas do rio São Francisco voltou ao centro do debate nacional. Ressuscitado no primeiro mandato de Lula, mudou de nome, passou a ser chamado “integração de bacias”, e vem com tudo no segundo. Foram destinados 6,6 bilhões reais do PAC – Plano de Aceleração do Crescimento para as obras. O bispo dom Luiz Cappio, que fez greve de fome contra o projeto, enviou carta a Lula cobrando o diálogo interrompido com a campanha eleitoral e “esquecido” depois. Movimentos sociais organizam protestos na região e em Brasília. Voltam os discursos a favor e os contra. Mais mentiras que verdades circulando junto com muita desinformação.

A transposição do São Francisco foi inventada em 1847, sob Pedro II, voltou à cena durante a ditadura militar e ganhou força nos governos neoliberais, de Itamar a Lula. Pode ter ganho sofisticação técnica – o que também é contestável – mas permanece grosseiramente mentirosa na propaganda que pretende justificá-la publicamente. Continua prevalecendo um discurso enganoso que distorce dados sobre a região semi-árida, sobre o rio e sobre o próprio projeto, para manipular a opinião pública em prol dos interesses poderosos e inconfessáveis que estão por trás.

Dado fundamental que, de saída, questiona na raiz o projeto: ele não beneficiará muita gente nem a população que mais sofre com a seca, ao contrário do que dizem os pronunciamentos de seus promotores e defensores. E até será uma carga ainda mais pesada sobre quem já sofre dificuldades de água no semi-árido. É óbvia a falta de informação isenta e fundamentada. O debate não é democrático.

Falas e atitudes recentes revelam que o governo quer impor a transposição, agindo unilateralmente e em total desrespeito ao acordo que pôs fim à greve de fome de dom Luiz Cappio, em novembro de 2005. Fortalecido com a grande votação do Presidente Lula no segundo turno das eleições, o governo não mais quer discutir. Na verdade, nunca pensou em não realizar o projeto.

Na contramão da história, quando o aquecimento global faz temer pelo futuro do planeta, o governo anuncia o PAC, eixo do segundo mandato de Lula, voltado para novas e brutais agressões à natureza e a comunidades tradicionais. No PAC a transposição levará mais da metade do orçamento proposto para a infra-estrutura hídrica (12,6 bilhões de reais). Significa uma tal concentração de investimento público em um único projeto que assim pode ser considerado excludente. Verdade que deveria interessar à opinião pública do Nordeste e de toda nação.

Ainda mais quando o TCU – Tribunal de Contas da União constatou que os beneficiados não serão os afirmados 12 milhões de nordestinos, mas a metade disso e ainda a depender de outras obras complementares. Concluiu o TCU que nenhum investimento deverá ser feito enquanto o STF – Supremo Tribunal Federal não decidir finalmente sobre o assunto. O Ministério da Defesa devolveu a verba que tinha sido depositada para o Exército iniciar as obras e disse que vai esperar pela decisão da Justiça.

A questão jurídica em que se tornou a transposição está em fase de solução final no Supremo Tribunal Federal (STF). No derradeiro dia de funcionamento do Judiciário em dezembro de 2006, o Ministro Sepúlveda Pertence suspendeu as liminares contra o projeto. O governo comemorou e ficou martelando que nada mais impedia as obras, só faltando a Licença de Instalação que o IBAMA estaria para dar. Mas o próprio Procurador Geral da República recorreu contra a decisão do Ministro. E os 11 Ministros do STF terão que se pronunciar, decidindo se a transposição pode ou não ser feita.

Mentira cruel

O discurso populista diz que a transposição é para levar água para saciar a sede dos pobres do Nordeste Setentrional – parte norte da região do semi-árido, no Ceará, Paraíba, Pernambuco e Rio Grande do Norte. Na verdade, esse discurso esconde a intenção de favorecer empresários da construção civil, da irrigação, da exportação de frutas, da carcinicultura (criação de camarão), do pólo siderúrgico-portuário do Pecém (Fortaleza – CE) e das monoculturas para a produção de biocombustíveis. Esses grandes interesses se aliaram num poderoso grupo de pressão que atua instalado dentro do Estado brasileiro atravessando sucessivos governos. Obscurecida fica a verdade, admitida no próprio texto do projeto: 70% das águas serão para atividades agrícolas, 26% para uso urbano-industrial e apenas 4% para consumo humano da população das caatingas, em nome da qual se quer justificar a obra.

O discurso oficial precisa martelar o tempo todo que são 12 milhões de beneficiados (em 2025) porque será esta população toda a custear o uso econômico de água tão cara. Hoje o metro cúbico de água (m3) no pé da planta está em torno de 0,030 centavos no Submédio São Francisco. Na transposição custará entre 0,11 a 0,18 centavos ainda no canal. Estudos da USP – Universidade de São Paulo calculam que poderá custar até 0,48 centavos***. Será o consumidor doméstico, beneficiado ou não com essa água, através do mecanismo de “subsídio cruzado”, quem vai arcar com esse valor, custeando “democraticamente” os empresários… Um verdadeiro “presente de grego”, que chega a ser cruel com uma população que sofre com a oferta irregular de água. Uma “integração” ainda mais desintegradora, que se vale de um ultrapassado e rançoso discurso regionalista e dos velhos mecanismos da “indústria da seca”.

A solução verdadeira para o déficit hídrico do semi-árido está na direção apontada pelo Atlas Nordeste lançado pela ANA – Agência Nacional de Águas. São localizadas 530 pequenas e descentralizadas obras que resolveriam a falta d’água para consumo humano nos lugares com mais de 5 mil habitantes. A elas se somam as iniciativas desenvolvidas pelas entidades reunidas na ASA – Articulação do Semi-Árido: captação e manejo das águas disponíveis e suficientes na região, através de tecnologias acessíveis e sustentáveis, como as cisternas de placa, barragens subterrâneas, barragens sucessivas, quintais produtivos, etc., educação e comunicação para a convivência com o semi-árido, tirando proveito do clima. Verdades na contramão dos interesses da transposição…

No momento atual do país, decisivo não só para as populações implicadas em mega-obras como a da transposição, é fundamental que se manifeste a sociedade organizada, comprometida com a verdade e com um verdadeiro desenvolvimento, e confronte um falso “crescimento”. É preciso revelar que a opinião pública regional e nacional está sendo iludida pela propaganda. É necessário democratizar o debate sobre a necessidade ou não da transposição e sobre qual desenvolvimento é viável e desejável para o Nordeste e para o São Francisco. A mentira, de perna curta ou comprida, cedo ou tarde será desmascarada. Só não precisa custar tantos e evitáveis danos econômicos, sociais e ambientais.

* Artigo para o Koinonia, Rio de Janeiro.
** Articulador Geral e Assessora do Projeto da CPT/CPP “Articulação Popular pela Revitalização do São Francisco”.
** http://www.projetobr.com.br/Content.aspx?Id=.

in www.EcoDebate.com.br – 12/03/2007