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Editorial

Acordo Brasil e EUA sobre o etanol: O desastre que nos espera, por Henrique Cortez

[EcoDebate] Nas últimas duas semanas, dedicamos especial atenção na publicação de artigos e matérias que colocavam em debate os imensos riscos sociais e ambientais desta irrefletida opção pelo etanol.

As declarações de diversas autoridades, inclusive do presidente Lula, quando da visita de inspeção de Bush, demonstram que o governo não conhece ou prefere não reconhecer os riscos.

Partindo do princípio de que é um mero desconhecimento dos fatos, por quem deveria ter um especial cuidado para com as políticas públicas, acho conveniente discutir algumas das impressionantes afirmações dos últimos dias:

1) Os agro-combustíveis ajudarão no combate ao aquecimento global

Os agro-combustíveis devem ser considerados como combustíveis de emissão zero, porque o carbono acumulado ao longo do processo de crescimento do vegetal base será novamente liberado durante o seu processo de produção e na combustão pelo motor.

É um mecanismo de estabilização, mas, em nenhuma hipótese, é um processo de seqüestro de carbono.

A tragédia climática é essencialmente causada pela geração de energia elétrica em termelétricas, principalmente a carvão e gás. Este é o caso dos EUA, China, Índia e Austrália e eles não desativar as usinas porque possuem gigantescas reservas de carvão, plenamente operacionais e amortizadas há décadas.

As termelétricas a carvão dos EUA respondem por 52% da geração de energia elétrica e suas reservas são suficientes para mais 200 anos de exploração, mantidos os níveis de consumo de 2000. É delírio achar que eles mudarão a matriz energética.

No caso automotivo, os norte-americanos adoram carros imensos, com enormes motores, símbolos da confusão entre tamanho e performance. Bastaria que metade da frota automotiva de passeio dos norte-americanos adotasse como padrão os motores 1.6, para o consumo de gasolina fosse reduzido em 15% e a emissão em mais de 20%. Só é preciso “sensibilizar” as poderosas indústrias automotivas e petrolíferas norte-americanas. Não parece simples?

Outro persistente mito tenta fazer com que acreditemos que os agro-combustíveis irão substituir os combustíveis fósseis.

A atual produção somada do Brasil e EUA (cerca de 40 bilhões de litros) equivale a pouco mais de 4% do consumo mundial de combustíveis fósseis. Nem transformando o planeta em um imenso canavial a produção seria suficiente para substituir os combustíveis fósseis.

Ou seja, os agro-combustíveis são importantes e necessários, mas não farão grande diferença em relação ao excesso de carbono na atmosfera. Para os norte-americanos é um mero discurso, de baixo custo e irrelevante impacto econômico, que permite tangenciar a questão principal – a geração termelétrica a carvão e gás.

2) Desenvolvimento de biocombustíveis pode ajudar no combate à pobreza mundial e o acordo com EUA pode ser marco histórico à humanidade

Estas afirmações são meros slogans publicitários, nada mais que isto.

Gostaria que alguém dissesse em que lugar do planeta a monocultura sucroalcooleira tenha ajudado a combater a pobreza. Este é um discurso que conhecemos desde a época das Capitanias Hereditárias e o nordeste brasileiro ainda aguarda pelo tal combate à pobreza.

Mais da metade da produção brasileira ainda depende de intensa exploração de mão de obra barata e descartável. É um sistema tão exploratório que leva diversos trabalhadores rurais à morte por exaustão e é injustificável que o governo ainda desconheça o fato, amplamente demonstrado e divulgado pela Fundacentro, organização do Ministério do Trabalho e Emprego.

Um trabalhador rural, para receber R$ 413,00 ao mês precisa colher, pelo menos, 10 toneladas de cana.

Ou seja, a competitividade comercial de nosso etanol é baseada na exploração de milhares de trabalhadores nos canaviais.

Quando o governo diz que pretende exportar a tecnologia de nossas usinas, certamente também está incluindo o modelo de produção baseado na intensa exploração de mão de obra barata.

Imaginem este modelo aplicado na África e na América Central.

Pensando bem, na África e na América Central , um modelo de produção agrícola controlado por uma minoria rica e poderosa, explorando à exaustão o trabalho de milhares de trabalhadores rurais não é nenhuma novidade. Aqui no Brasil também não é novidade desde 1530, quando iniciamos a cultura da cana-de-açúcar e foram instalados os primeiros engenhos, a serviço do império de então.

É possível que o acordo com EUA seja marco histórico à humanidade e que eu não esteja conseguindo compreender a amplitude do acordo. Existem muitas bravatas além da minha capacidade de compreensão.

3) Bush ficou impressionado com a nossa tecnologia em bi-combustíveis

Os norte-americanos e ingleses já usam o combustível E85 (mistura com 85% de etanol e 15% de gasolina) desde o início dos anos 80. Calcula-se que, nos EUA, mais de 4 milhões de veículos já usem esta mistura, para a qual a maioria dos veículos novos, produzidos desde 2000, pode ser facilmente adaptada e atendida por quase 700 postos no meio-oeste americano.

A “nossa” tecnologia bi-combustível é produzida pelas multinacionais Bosch (alemã), Delphi (norte-americana) e Magneti Marelli (italiana).

Comparada com a produção de etanol a partir do milho, a produção a partir da cana-de-açúcar não é tão inovadora assim.

Então, Bush ficou impressionado com que?

4) Respeitando ambiente, cana pode multiplicar área plantada por 20

O argumento é que já existem disponíveis milhões de hectares de pastagens degradadas que podem ser usadas na expansão da área plantada de cana-de-açúcar, além dos 6,5 milhões de hectares que já estão em produção.

Este argumento foi inúmeras vezes utilizado pela ministra Marina Silva para justificar a expansão das áreas de soja. Não foi assim que aconteceu, porque a expansão ocorreu e ocorre nas novas fronteiras agrícolas: entenda-se a amazônia e o cerrado.

A maior parte das áreas degradadas foi explorada até o esgotamento de sua capacidade produtiva. Para que sejam novamente incorporadas à produção precisam ser recuperadas e isto leva tempo e exige pesados investimentos. Como o agronegócio (em qualquer lugar do planeta) é defensor do capitalismo sem riscos, não investirá em recuperação e por isto a soja não se expandiu nos milhões de hectares degradados.

Desta vez, não será diferente. A expansão da área plantada não respeitará o meio ambiente e continuará a tragédia social que sempre foi.

Vejamos o caso da Malásia e da Indonésia, os maiores produtores e exportadores de biodiesel, produzido a partir do óleo de palma, que devastaram as suas florestas, comprometeram seus recursos hídricos e reduziram drasticamente a produção de alimentos.

Malásia e Indonésia preferiram reduzir a produção de alimentos para aumentar a área disponível para produção do biodiesel. Mas eles não estão sozinhos, porque isto já acontece no Brasil, como, por exemplo, na região de S. José do Rio Preto, interior de São Paulo, em que muitos produtores de laranja erradicaram seus os laranjais para plantar cana-de-açúcar.

O governo diz que a produção pode aumentar dos atuais 17 bilhões de litros para mais de 40 bilhões. Temo que seja verdade.

Nem vou discutir a devastação que se seguirá, mas vamos pensar na emissão de poluentes particulados pela queimada da cana, que já é uma tragédia para a saúde pública no interior do estado de São Paulo.

Por outro lado, para uma produção de 40 bilhões de litros estaremos também produzindo 320 bilhões de litros de vinhoto. E o que fazer com 320 bilhões de litros de um resíduo extremamente poluente? Ou será que ninguém lembrou disto?

Ou seja, o desastre sócio-ambiental atual em escala ainda maior.

5) Segundo Bush, Brasil e EUA devem liderar mudança energética

Os dois países já respondem por 70% da produção mundial de etanol e continuarão os maiores produtores mundiais, qualquer que seja o cenário das próximas décadas. Em 2004, o etanol produzido a partir do milho nos Estados Unidos, apesar de subsidiado, tinha preço de produção em US$ 0,29 por litro, enquanto o gerado a partir da cana-de-açúcar no Brasil custava US$ 0,23 por litro

Se os norte-americanos não irão reduzir as taxas de importação de etanol, para não desagradar os “rednecks” produtores de milho, então qual é o real acordo?

Em princípio, os generosos “amigos” do norte estão dispostos a investir na nossa capacidade de produção, nos “ajudando” a alcançar a marca dos 40 bilhões de litros, porque eles pretendem substituir 15% da gasolina atualmente consumida por etanol.

Ok. Vamos tentar entender melhor.

Se os EUA adotarem a mistura “brasileirinha”, como eles chamam, de 85% de gasolina e 15% de etanol, a produção mundial atual terá que aumentar para 130 bilhões de litros de etanol, só para atende-los.

A demanda será mais de 7 vezes a produção atual do Brasil e mais do que o dobro de toda a produção mundial, incluindo os EUA. O resto do planeta, Brasil inclusive, que se vire para atender à necessidade do império.

Os EUA estão iniciando negociações de compra de etanol, no Brasil ou em qualquer outro país, com a garantia de oferta firme. A famosa negociação do Brasil com o Japão, para venda de etanol, também foi assim.

Traduzindo: as usinas/distribuidoras do país vendedor garantem a oferta e entrega de muitos bilhões de etanol em um determinado prazo e fluxo, sem levar em consideração qualquer dificuldade de produção, de quebra de safra ou de problemas climáticos. É a tal de oferta firme.

Nesta lógica neocolonial, se algum mercado ficar sob risco de desabastecimento, será o do país vendedor e não os EUA.

Não há quem não saiba o que pode significar contrariar os interesses estratégicos do império. Se alguém não compreendeu os riscos de frustrar a expectativa de compra e abastecimento de combustíveis pelos norte-americanos, basta lembrar do Iraque. Deu para entender melhor?

Vejamos o que a Agência EFE (in UOL Notícias – 09/03/2007 – 15h55) descreve como a essência do acordo que é um marco na história da humanidade:

– Brasil e EUA, os dois principais produtores mundiais de etanol, se comprometem a avançar na pesquisa e no desenvolvimento de novas tecnologias para promover o uso dos biocombustíveis.

– Os dois Governos reconhecem que a redução do custo da produção, dos terrenos necessários e dos preços das matérias-primas para sua produção são “fundamentais” para o aumento do uso destes combustíveis.

– Os dois países declaram sua intenção de ajudar outros países, começando pela América Central e o Caribe, a estimular a produção e o consumo local de biocombustíveis.

– Brasil e EUA cooperarão, através do Fórum Internacional de biocombustíveis, no desenvolvimento de padrões homogeneizados para os biocombustíveis e na regulamentação que facilite sua comercialização nas bolsas.

– O etanol e outros biocombustíveis fazem parte de uma estratégia mais ampla para fazer frente a problemas de segurança energética, de poluição e de mudança climática, em seus respectivos países e em toda a região, segundo os dois países.

Peço especial atenção dos leitores para dois itens em especial: (1) – Os dois Governos reconhecem que a redução do custo da produção, dos terrenos necessários e dos preços das matérias-primas para sua produção são “fundamentais” para o aumento do uso destes combustíveis e (2) – Brasil e EUA cooperarão, através do Fórum Internacional de biocombustíveis, no desenvolvimento de padrões homogeneizados para os biocombustíveis e na regulamentação que facilite sua comercialização nas bolsas.

Reduzir o custo de produção, dos terrenos (leia-se das terras agricultáveis) e dos preços das matérias-primas só pode significar ampliar a fronteira agrícola para terras públicas (floresta e cerrado) e intensificar a exploração da mão-de-obra dos trabalhadores rurais.

A comercialização dos agro-combustíveis em bolsa significa ignorar que são produtos agrícolas e meramente reconhece-los como combustíveis, colocando-os completamente além da alçada da OMC, tal como interessa ao império. E alguém já ouviu falar em soberania sobre commodities? Qual o controle social sobre uma mercadoria cotada em bolsa?

Que acordo é esse afinal?

Pelo que compreendi, O Brasil assumirá um compromisso neocolonial, no qual vamos aumentar a área plantada de cana-de-açúcar em até 20 vezes, transformando florestas e cerrado em um gigantesco canavial, aumentando a exploração do trabalhador rural, tudo para garantir o fornecimento de etanol para a metrópole imperial.

Se assim for, realmente será um marco na história da humanidade, simplesmente porque o Brasil realizará o impensável salto do século 21 diretamente para meados do século 16.

Espero estar errado, porque, cedo ou tarde, o Iraque será aqui.

Henrique Cortez, henriquecortez@ecodebate.com.br
Coordenador do EcoDebate