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Artigo

A água nossa de todo dia, por Osvaldo Ferreira Valente

[EcoDebate] São muitos seminários, fóruns e atos públicos. São muitas reuniões, entrevistas e palestras. Todos falando da importância da água. Ela está na moda, inspira preocupações e é explorada por ambições de diversas naturezas. Mas o importante mesmo é que ela seja vista como a água nossa de todo dia, com todos os conflitos resultantes dos sentimentos de amor e ódio que ela desperta e que precisam ser adequadamente analisados e avaliados, antes da implantação de qualquer ação em benefício da sustentabilidade do recurso.

Para exemplificar, vamos imaginar duas realidades bem diversas: 1) Em uma típica casa de alguma cidade do sudeste brasileiro, já e ainda bem servida de água, a mãe chama a criança, bem cedinho, e tem quase que empurrá-la, sonolenta, para o banheiro. E está preparando o uniforme da escola quando escuta – manhê, não tem água! E a torneira seca é o começo de um grande transtorno que se arrastará por boa parte do dia, apesar de o problema estar no simples rompimento da tubulação que abastece a rua. No final do dia parece que tudo foi resolvido, pois voltou a disponibilidade dos 180 litros diários por pessoa , consumo médio da família. Mas olha, foi um sufoco! 2) Em outra típica casa, só que agora em região semi-árida, a mãe chama a criança, também muito cedo, mas não é para ir à escola, é para acompanhá-la naquela longa caminhada diária em busca de alguns poucos litros d’água. Se conseguir uns 20 ou 30 para cada membro da família, certamente fará uma oração de agradecimento. Mas ao contrário da primeira mãe, não terminará o dia tranqüila, pois o sufoco permanece e o próximo dia poderá ser pior. Nem a tal de transposição do Velho Chico a entusiasma, pois tem um parente que já mora a poucos quilômetros do rio e continua passando tanto sufoco quanto ela.

Continuando a bisbilhotar o dia-a-dia das duas mães, é possível descobrir outros comportamentos interessantes. A primeira, apesar dos transtornos sofridos com a falta de água durante a manhã, assusta-se, à tarde, com a escuridão que prenuncia uma chuva forte, temendo aqueles outros problemas causados pelas freqüentes inundações de sua rua. Não se lembra, nessa hora, de serem as chuvas as responsáveis pelo volume de água dos reservatórios superficiais ou subterrâneos que abastecem aquela tubulação e que, ao ser rompida, deixou secas as suas torneiras no início do dia. Já a segunda mãe olha para o céu, no finalzinho do dia, vê o pequeno ajuntamento de nuvens brancas e reza para São José, pedindo que a chuva caia logo. Chuva que ela também não consegue aproveitar melhor, pois não tem reservatórios (cisternas, barragens subterrâneas etc.).
Enquanto as duas mães não se sentirem protegidas do excesso ou da escassez de água, elas continuarão a ter sentimentos conflituosas com o recurso. Daí serem imprescindíveis as ações efetivas para resolver os problemas e racionalizar as atitudes, eliminando as sensações de dádiva ou de castigo que só provocam resignação e descrença.

Mas para resolver e racionalizar é preciso sair do assembleismo, da mania de ficar em gabinetes fazendo leis e normas. Elas criam exigências que na maioria não serão cumpridas por absoluta falta de fiscalização. Também é mais lógico contratar técnicos para resolver o problema e não fiscais para multar, alocando recursos para implantação das ações necessárias. Os movimentos de conscientização, típicos das entidades ambientalistas, precisam ser completados por ações. Do contrário, vem o desânimo. Ainda não se pode esquecer, nunca, que os ciclos hidrológicos produtores e condutores de água se completam no campo e nas concentrações urbanas e só podem ser regularizados com a implantação de tecnologias adequadas. E tecnologias criativas, apropriadas e de baixo custo só podem ser desenvolvidas por meio do contato direto e constante com as diversas realidades ambientais em que se desenvolvem os ecossistemas hidrológicos.

A mãe do sudeste precisa conhecer sua realidade espacial. Se estiver com sua casa dentro do leito maior do curso d’água, precisa saber que essa área é passível de inundação, pois está reservada para expansão natural do córrego ou do rio. O poder público deve estar disposto a participar da sua retirada ou da realização de obras que possam minimizar o desconforto e reconciliar a referida mãe com as sutilezas do ciclo hidrológico. Resolver o seu dilema de amor e ódio em relação à água. Quanto à mãe do semi-árido, ela precisa, por exemplo, ser ajudada na construção de reservatório de água de chuva e treinada na sua utilização. Em qualquer dos casos, são necessárias políticas públicas, garantindo recursos financeiros, e tecnologias apropriadas.

Osvaldo Ferreira Valente, Professor Titular Aposentado da Universidade Federal de Viçosa; Engenheiro Florestal e Mestre em Engenharia Agrícola, na área de conservação de água e solo; Especialista em Hidrologia e Manejo de Pequenas Bacias Hidrográficas, ovalente@tdnet.com.br

in www.EcoDebate.com.br – 09/03/2007