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Artigo

O nacional se reproduzindo no local ou Tudo farinha do mesmo saco, por Magnólia Azevedo Said

Os caminhos do São Francisco se embaralham numa rede que não está pra peixe

[EcoDebate] O governo do Estado do Ceará recebeu sua cota de merecimento pós-eleição no recente Programa de Aceleração do Crescimento – PAC, lançado com o estardalhaço que governos populistas costumam fazer quando decidem anunciar mudanças para nada mudar e se aproveitar de medidas de impacto midiático para inserir aqueles projetos que isoladamente têm causado desconforto às hostes governamentais, pelas manifestações de resistência e crítica que encerram, tanto de setores representativos dos poderes da República, como de setores da sociedade civil. Foi o mesmo com o Avança Brasil, do presidente Fernando Henrique Cardoso.

Os casos das hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau no Rio Madeira e da transposição do São Francisco, ambas com a vertente das Parcerias Público-Privado (PPPs), são exemplares.

Esses projetos fazem parte de uma visão de desenvolvimento regional que se pretende consolidar através de megaprojetos de infra-estrutura, que têm impactos negativos diretos e indiretos nas populações locais e no meio ambiente. O complexo do rio Madeira que compreende, além das hidrelétricas citadas, duas outras vinculadas à Bolívia e uma hidrovia, se constitui no maior e mais caro projeto que compõe a grade de 31 projetos do Plano de Integração da Infra-estrutura Regional da América do Sul (IIRSA), com financiamento do BNDES, Corporação Andina de Fomento (CAF) e Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), inicialmente, e o envolvimento das já conhecidas empreiteiras Odebrecht e Queiroz Galvão, dentre outras.

Existe todo um movimento de resistência na região amazônica, envolvendo técnicos de Universidades, cientistas e movimentos sociais que atestam que os impactos serão irreversíveis, tanto para as populações como para o meio ambiente, posto que além de obrigar o deslocamento de milhões de pessoas, deverá alterar permanentemente o ciclo hidrológico e a integridade biológica da bacia amazônica.

A transposição do São Francisco se insere na mesma lógica: um processo de integração desintegradora, onde se fortalece e se amplia o poder das transnacionais aqui instaladas, o agronegócio, as grandes empreiteiras e as elites favorecidas pela infra-estrutura disponibilizada nos projetos que compõem a transposição. É esse o modelo de desenvolvimento pensado para o Ceará e, de resto, para o Nordeste: complexo Portuário do Pecém, Canal da Integração, Siderúrgica Ceará Stell, Transnordestina. Os prejudicados serão os mesmos — assim como são as mesmas as empreiteiras que se beneficiam desse “negócio”. Os bancos multilaterais e o BNDES também participam do financiamento dessas obras, que serão agraciadas com o maior volume de recursos das ações de infra-estrutura descritas no PAC, evidência explícita da prioridade que o segundo governo Lula dará aos investimentos produtivos e à infra-estrutura. E nesse sentido, a transposição surge com bastante força. Estão previstos R$ 6,6 bilhões para a transposição no período de 2007 a 2010, de um total de R$ 12,6 bilhões

A distância entre a retórica governista e a realidade é vista em diferentes momentos.

Primeiro, no calote dado pelo governo às organizações da sociedade civil quando abre um processo de diálogo ano passado, para discutir a transposição do São Francisco e sua revitalização no contexto de um projeto de desenvolvimento sustentável para o Nordeste. Na prática, contudo, incorpora a transposição como prioridade de recursos no PAC e já acena com o início das obras pelo Exército, após ter ganho de presente de Natal, do Ministro do Supremo Tribunal Federal, Sepúlveda Pertence, uma decisão suspendendo as liminares concedidas pela Justiça contra a transposição. Ministro este que almeja cair “nas graças” do Presidente para, quem sabe, alçar vôos mais altos na estrutura de poder. Contando com a prática do fato consumado e de que a sociedade civil em geral, não tem o devido cuidado no entendimento de como se dão os processos na institucionalidade, o governo usa a decisão em seu benefício, fazendo pouco caso de um “detalhe jurídico”: a decisão do Ministro é unilateral e intermediária; ela não julga o mérito, portanto, pode ser modificada. Mas o fato gera reação em cadeia, ou seja, imediatamente o Ministro da Integração anuncia o início das obras e desqualifica as razões que levam a que Bahia e Sergipe sejam contra a transposição, tratando-as como arranjos políticos que serão resolvidos, tendo agora o governo da Bahia como aliado do Presidente Lula.

Segundo, na entrevista do Ministro da Integração (o cearense Pedro Brito) a um jornalista de Brasília, quando afirma que “já está mais que claro que não haverá prejuízo para ninguém com o projeto”. Os municípios ribeirinhos vão todos ganhar saneamento básico e suas populações serão beneficiadas pela Reforma Agrária que será feita nas margens do rio e com os recursos para a agricultura familiar”. Ora, isso é uma acinte à nossa inteligência! Vá ele dizer essa mesma coisa para os pescadores que vivem no entorno do Porto do Pecém, às mulheres e homens que moram no Vale do Jaguaribe, à população que vive em comunidades próximas ao Castanhão, à população que vive à beira dos rios em Limoeiro do Norte e na região do Cariri!… Talvez o Ministro se desse conta da maldade gerada por um discurso que só confirma a opção por um modelo de desenvolvimento que considera pessoas como objetos descartáveis, na medida em que incomodam/atrapalham o modelo que se quer implantar.

Mas o Ministro é apenas mais um “enquadrado” na agenda das Instituições Financeiras Multilaterais, adotando-a como sua agenda. Tanto é que confirma, na mesma entrevista, o poder que tem sido concedido à iniciativa privada (exigência do Banco Mundial e BID para empréstimos) quando afirma que obras estruturantes serão realizadas através da PPP’s: “…vamos inaugurar as PPP’s no semi-árido” — deixando bem clara a opção preferencial do governo federal: a relação com os bancos multilaterais (Banco Mundial e BID em especial), não apenas no plano financeiro, mas na assistência técnico-política, uma outra faceta da atuação dessas instituições. Mesmo ciente dos problemas decorrentes da opção do governo federal de deixar para a iniciativa privada a responsabilidade com os serviços públicos, o Ministro assume publicamente o atual modelo: “Estamos agindo com a lógica do mercado”. Não podemos esquecer a tragédia ocorrida na linha 4 do metrô de São Paulo, exemplo do que significa deixar para a iniciativa privada a responsabilidade pelo serviço público.

É exatamente dessa lógica que irão decorrer, caso a transposição se efetive, consequências de diversas ordens. Em termos econômicos, os impactos causados por obras desse porte e a entrada dos empreendimentos que elas favorecem com intervenções nos modos de produção, consumo e comercialização, vão resultar numa desvalorização maior de um segmento que vem há décadas sendo utilizado como mantenedor do capital — a agricultura familiar.

Em termos ambientais, uma ação desse tipo sobre a região atingida vulnerabiliza o ambiente, impedindo uma utilização responsável dos bens naturais para garantir a sustentabilidade e a saúde das populações, da fauna e da flora. Em termos socioculturais, fragmenta-se a unidade familiar e descaracteriza-se a relação das pessoas com o território, retirando delas a possibilidade de fortalecimento de suas identidades e sociabilidades.

No caso do Ceará, em se tratando de políticas de desenvolvimento e, especificamente, dos projetos de infra-estrutura, o governo Cid segue o mesmo padrão.

O que esperar de um governador que já foi consultor do BID, em Washington? Se ele chegou lá é porque comunga com a visão de desenvolvimento do Banco — e o Banco, por sua vez, sabe que ele vai apresentar o resultado desejado. Nada melhor para as instituições financeiras do que ter como parceiro institucional, alguém já familiarizado com suas diretrizes políticas.

No que se refere ao estado das águas que se encontram com o rio São Francisco e às condições das populações ditas beneficiárias, a situação vista nas bacias demandantes é alarmante. A Frente Cearense Por Uma Nova Cultura de Águas e Contra a Transposição das Águas do Rio São Francisco enviou uma equipe de filmagem a esses lugares e o que viu e ouviu é suficiente para denunciar o governo do Estado junto aos organismos internacionais de Direitos Humanos pelas violações a esses direitos, decorrentes da forma como é tratada a água no Estado.

No Vale do Jaguaribe, as pessoas que vivem à margem do rio, compram água cara porque a água do rio não serve para beber ou cozinhar, tendo em vista a poluição causada por fazendas de criação de camarão. Quem bebe, contrai doenças. O rio está cheio, mas não contribui para a sobrevivência da população. Segundo moradores mais antigos, antes havia peixe em abundância, água boa e carnaubal para contribuir na geração de renda. Somente no médio e baixo Jaguaribe estão localizadas 32 fazendas de camarão “todas funcionando de forma irregular,em se tratando de licenciamento ambiental”, revela a engenheira química Lúcia de Fátima que realizou estudo na área. Em Tabuleiro de Russas, benfeitorias foram realizadas para favorecer um projeto privado de irrigação para transporte de frutas para o Porto do Pecém. A população dos assentamentos não consegue acessar a água do rio Jaguaribe; quem tem esse acesso são as multinacionais instaladas, por exemplo, na Chapada do Apodi. Pequenos açudes estão salinizados, peixes mortos são vistos no seu interior, o que impossibilita o uso da água para beber, para os animais e para a pesca.

Em Limoeiro do Norte, foram identificados, no ano de 2006, 1.006 casos de intoxicação por agrotóxicos provenientes das empresas de fruticultura.

Em Nova Jaguaribara, vive-se da lembrança da fartura do passado, se comparado com a situação atual. Segundo moradores/as, o rio era um meio de vida, de saúde e de alegria. Hoje, a única coisa beneficiada com o Castanhão é a piscicultura privada. Foi no assentamento Mandacaru que soubemos como foi feita a imagem que entrou nas nossas casas sobre a propaganda oficial do Castanhão: “pra senhora ver… botaram um pobre dum velho no carro… levaram prum campo de aguação… fizeram uma montagem… a gente vê coisa que dá uma dor… como é que eles inventam uma coisa dessas…?… O canal do trabalhador tá beneficiando não sei quantas famílias…ah, se eu pudesse dizer aqui que era mentira…”

No mesmo assentamento, um morador nos contou sobre os mecanismos usados pelo governo do Estado para convencer a população a sair de suas terras para a nova cidade, em função da barragem do Castanhão. À época, o superintendente do DNOCS era o ex-deputado Eudoro Santana, que hoje assume a função de Diretor Geral do mesmo órgão. O depoimento é contundente: “O DNOCS construiu no que é nosso e nós num recibimo nada de indenização; o Eudoro veio aqui, e fez essa promessa e nunca mais veio; fiquemo numa situação mais ruim do mundo”. Para confirmar suas palavras, ele apresenta o Termo de Compromisso assinado por Eudoro Santana com a comunidade.

Na comunidade de Desterro, em Jaguaretama, não se tem água, renda, escola, nem acesso a posto de saúde. O abastecimento se dá através do carro-pipa. “O rio era a nossa vida; a obra do Castanhão trouxe sofrimento para o povo…. se pegarmos um balde d’água somos expulsados pela polícia; eu queria que o povo acordasse… principalmente dessas promessas…. barragem não é aquilo que eles prometem… o Castanhão veio mais pros ricos melhorarem a vida deles… afogaram nosso passado…”

Nessa comunidade, Eudoro é também citado: “a gente já está cansado … 4 anos de espera… quem sente o sofrimento somos nós… ano passado.. 8 meses atrás… Eudoro Santana prometeu…; mas não vamos desistir”.

Em Limoeiro do Norte, numa extensa área de fruticultura, propriedade da Del Monte (empresa sediada em Miami), a água do rio está contaminada pela alta dosagem de veneno, causando problemas de pele, pulmão, estômago, principalmente nas crianças, além da poeira causada por um imenso fluxo de caminhões que se deslocam com as frutas ao Porto do Pecém. Na área do Km 69, havia uma adutora feita com recursos do Projeto São José (financiado pelo Banco Mundial), para beneficiar 57 famílias. Hoje, ela está desativada, por só restarem 2 famílias.

Na região do Cariri, ao longo do rio Batateiras, vê-se o esgoto sendo lançado diretamente no rio. Em meio a isso, as pessoas não vêem na transposição uma prioridade mas, sim, têm a necessidade de recursos para preservar e restaurar o meio ambiente já degradado. “O nosso Estado tem tanta água… o problema não é falta de água… o problema é que a fonte tem dono…. assim como a terra tem dono… a água deve ser cuidada como bem público… água aqui está toda encanada…. cada cano sai de uma fonte de água cercada com arame farpado; na transposição, as águas vão se encontrar com o rio Granjeiro que foi transformado num verdadeiro esgoto.”

Seja em que área for, aonde o rio se propõe a passar, a certeza das pessoas é uma só: “…esse projeto não é saída pro semi-árido; onde a água vai passar, o rio tá todo poluído e, principalmente aqui no Ceará, quem precisa não vai ter acesso… e aí os custo social disso aí é grande… a dívida vai ficar pra várias gerações.”

No município de Icó, onde se encontra o rio Salgado — pleno de lixo, escoadouro de vários esgotos, assoreado e eutrofizado —, o monocultivo é a base da agricultura, toda orientada para o uso de agrotóxicos. É o município com maior incidência de câncer no Estado e os dados são alarmantes. A transposição intenta passar por lá, garantindo a junção dos rios-esgoto (Batateiras, Salgado-Riacho dos Porcos) no que seria a bacia hidrográfica receptora.

No Complexo Portuário do Pecém — destino final da transposição —, houve uma queda na qualidade de vida da população pescadora: “…antes se podia pescar livremente com nossas jangadas; agora a área é impedida…é proibido a gente pescar; se for pro mar, a Capitania vem e prende o material… a multa é muito alta; tem muita gente endividada; aí faz acordo e parcela, mas fica amarrado”. “Eu acho que através do Porto não trouxe benefício; com a construção, o mar avançou… derrubou as casas tudim; trouxe muita prostituição”. “Eles disseram que o Porto ia trazer muito emprego, mas veio foi o pessoal de fora: São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia.” “Alí onde tá o Porto tem muita pescaria, mas é proibido; eles vigiam com uma câmara”.

A Usina Siderúrgica Ceará Stell faz parte do complexo portuário e, a partir dela, se espera elevar a exportação local de placas de aço em 41%. Para tal, o seu consumo de água será equivalente ao que consome uma população de 90.000 pessoas. Vale dizer, água que se pretende, vir da transposição.

Contudo, convém lembrar que “o rio deságua no mar… e ele tem que desaguar. Não é desperdício de água; não é perda… é garantia de biodiversidade”.

Recuperar a água como debate cultural na visão de uma nova cultura da água, não é virar as costas para o desenvolvimento, é qualificar esse desenvolvimento na perspectiva de que ele sirva não a uns poucos, mas às populações que historicamente são a base da agricultura, da pesca, da sustentação, enfim, do nosso povo. Povo cuja riqueza é grande e que, não fosse a espoliação também histórica, e enorme, de que é alvo, não estaria a precisar de políticas públicas assistencialistas, como as que lhe vêm sendo dirigidas. Povo para quem a água é não um “bem”, no sentido de mercadoria, mas um elemento essencial à vida.

Fortaleza, 23 de fevereiro de 2007

Magnólia Azevedo Said
Frente Por uma Nova Cultura de Água

in www.EcoDebate.com.br – 27/02/2007