Memória do Apocalipse, por José de Souza Martins
As ilusões da cultura do bem ilimitado, do desperdício consumista, teceram o pano de fundo para o aviltamento da vida e para a catástrofe ambiental
[Valor Econômico] Todos nós conhecemos evidências diretas da catástrofe ambiental que se arrasta há muito e cujo desfecho irreversível o Intergovernmental Panel on Climate Change (IPCC) anunciou há poucas semanas.
O mundo que nós conhecemos está acabando. Bilhões de pessoas terão morrido de sede dentro de 80 anos, cidades serão inundadas pela elevação do nível dos oceanos em conseqüência do aquecimento, em muitas regiões do mundo faltará o alimento.
Satanás já venceu a batalha de Armagedom. Os que sobreviverem terão que passar por grandes mudanças no modo de viver atual.
É praticamente certo que conhecemos pessoas, sobretudo crianças de hoje, nossos netos, que viverão em agonia o inferno do Apocalipse. Já não se trata de algo que acontecerá um dia, lá longe, remotamente.
Já podemos olhar nos olhos das pessoas que verão as cores desses dias de horror. Nem será aquele Apocalipse simbólico do testemunho de João. Será pior, porque nele não haverá remissão.
Com o impacto da notícia, num átimo condensaram-se minhas lembranças de um sem número de indicações de que o tempo desse Apocalipse já estava instaurado, praticamente desde quando nasci, no meio das chaminés das numerosas fábricas da região do ABC paulista e industrial.
Vi, lá por meados dos anos cinqüenta, no escritório do historiador João Baptista de Campos Aguirra, um mapa dos anos vinte, da região, em que estavam assinaladas as suas fontes de água mineral.
No que corresponde hoje ao município de São Caetano havia pelos menos cinco delas. Estão todas secas.
Participei um dia, nos anos noventa, de uma excursão organizada pela Cetesb, da foz do rio Tamanduateí, no Tietê, até sua nascente numa idílica gruta de pedra num bosque do município de Mauá.
Os técnicos queriam nos apresentar a degradação de um rio que já estava morto, dezenas de tubos despejando líquidos de todas as cores e fedores no que um dia fora um rio potável e navegável.
Ao longo do caminho, mesmo em áreas servidas pela coleta pública de lixo, vimos pessoas atravessando as ruas que beiram o rio para nele despejar o lixo doméstico. Na gruta, tomei a água cristalina e fria onde nascia o Tamanduateí.
Uma centena de metros abaixo, uma fabriqueta de blocos de cimento despejava seus resíduos na água que, se quisesse, dono e trabalhadores poderiam beber. Eram os primeiros porcos da lista.
Na minha infância, nos anos 40 e 50, os rios da região ainda tinham peixes e neles brinquei com a molecada da minha vizinhança.
Um dia, no começo dos anos 50, meu padrasto foi pescar de tarrafa nas lagoas da margem do rio dos Meninos, afluente do Tamanduateí. Pegou muito peixe.
Preparado, era impossível comê-lo, tinha gosto de combustível, estava contaminado. Li depois relatórios antigos, dos anos 20, que já denunciavam a poluição química dos dois rios.
Lá por meados dos anos 60, descobrimos um dia que a água limpa e tratada que chegava às nossas torneiras tinha cheiro de urina e fezes. Dava nojo.
O rio Pinheiros, que até hoje é puro esgoto, havia sido invertido para despejar na represa Billings a sua água suja, necessária ao volume de água que assegurasse o funcionamento da hidrelétrica de Cubatão.
Só que a água para abastecer toda a região do ABC também era captada nessa represa. Depois de muito protesto a captação passou a ser feita longe dos focos de contaminação e a inversão do rio foi proibida.
Não só as águas da região industrial se transformaram num grave problema. Um vizinho mostrou-me um dia que já não tinha o septo nasal, a cartilagem corroída pelos ácidos da fábrica de produtos químicos em que trabalhara, ali perto.
Seu nariz escondia um buraco desproporcional. Explicou-me que eram centenas os operários com o mesmo problema, todos batendo às portas da Justiça do Trabalho.
Anos depois, a fábrica foi demolida e o terreno interditado pela Cetesb, pois estava completamente envenenado. Serão necessários cem anos, pelo menos, para que volte a ter algum uso humano.
O afã do lucro desregulamentado, incondicional e irracional, destruiu um pedaço do planeta como se o mundo pudesse ser loteado e destroçado com a simples invocação do direito de propriedade. O empresário destruiu seu próprio patrimônio. Não foi na África nem na Ásia: aconteceu aqui no subúrbio de SP.
Nem foi caso isolado. Na noite de 2 de junho de 1975, uma fábrica de fertilizantes no vale do Tamanduateí, na Vila Industrial, em Santo André, liberou uma nuvem tóxica que alcançou os bairros Jardim e Campestre, de classe média.
Ambulâncias, a polícia e os bombeiros foram mobilizados para retirar os moradores, casas tiveram que ser arrombadas para salvar intoxicados. No dia seguinte, animais mortos foram recolhidos nos quintais.
O sociólogo Antonio de Andrade, que trabalhava na Cetesb, testemunhou os momentos de desespero da população local e os registrou em sua tese de mestrado.
Ricos e pobres, os poderosos e os sem-poder, se irmanam na cruzada genocida, na inconsciência e na inconseqüência, esquecidos de que estão consumindo hoje o amanhã de seus netos, antropofagicamente comendo a vida de seus próprios descendentes.
Em pouco mais de cem anos houve imensa mudança de mentalidade em todo mundo.
As populações camponesas historicamente se pautam pelo que o antropólogo americano George Foster, estudando as populações camponesas da América Latina, definiu como cultura do bem limitado.
Para elas, tudo é finito e, por isso, deve ser usado com parcimônia reguladora da vida, consumido o estritamente necessário, reposta na terra a semente como tributo de quem consumiu seus frutos, as águas preservadas, os detritos e resíduos reciclados.
Com a difusão da sociedade de consumo, surgiu e se difundiu rapidamente a cultura oposta, a do bem ilimitado, a cultura do desperdício, a idéia de que tudo existe em abundância sem fim, basta ir ao mercado e comprar.
O anúncio da catástrofe ambiental nos diz, tardiamente, que isso é engano fatal. A vida, que é patrimônio do gênero humano, não está à venda.
José de Souza Martins é professor de sociologia na USP
(www.ecodebate.com.br) artigo originalmente publicado pelo Valor Econômico, EU – 16/02/2007