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Baixo Parnaíba: escrever é fazer ver, por Mayron Régis

[EcoDebate] Do alto de seus setenta e três anos, Dona Maria da Luz – nascida e criada em Santa Quitéria – Baixo Parnaíba maranhense – até mesmo na contrariedade – resplandecia. Numa visita calorosa à mãe – detentora da idade de 100 anos – de uma amiga morta – oito anos – um hábito, entre tantos, que ela afrouxara um pouco de sua rotina de todos os dias – santos ou não – receara responder em quem havia votado – enfim – um voto envergonhado na candidata do agronegócio – das estradas de faz-de-conta – do monopólio de comunicação – dos currais eleitorais – e da dívida social para com o povo maranhense. Ao digitar o número da candidata na urna eletrônica, pesara “a amizade” do filho por um aliado dela – e na arte maranhense diária de fazer política, amizades vêm e vão conforme o pleito eleitoral.

Na frente dos parentes de sua amiga – a mãe, a filha, os netos e uma bisneta – Dona Maria da Luz corou e a sua metade negra veio à tona – muito de sua mãe, por certo, que morrera uma década atrás – e relembrou os dias em que pedia ajuda para sua estimada amiga quando a sua mãe se negava a comer.

Havia um quê de saudade – há um tempo para que a pessoa destranque as suas saudades – há um tempo para que estas planem e desçam suavemente sobre a mesa – há um tempo para que sejam desfrutadas por todos – e há um tempo para que se despeçam delas. Dona Maria da Luz sempre obediente aos seus princípios se despediu – para qualquer dia voltar – e ela voltava beijando a mãe de sua amiga e se confraternizando com todos. Os poucos menos de cinqüenta passos entre a casa da qual acabava de sair e a sua, ela consumou igualzinho a tantas outras vezes de sua vida – em Santa Quitéria ou já em São Luís para ir à igreja do bairro – como se andar fosse “o de menos” – “e o de mais” entocasse dentro de si – como quem entoca uma dúvida.

Um dia, bem nova, ela duvidou de si e do mundo – um representante da elite de Santa Quitéria fraudou a caderneta de dívidas do seu pai e este teve que pagar mais do que devia – um caboclo simples – queria quitar suas dívidas – o outro atrasou o atendimento – muito ocupado – e pediu para que deixasse a caderneta – ao voltar, o pai de Dona Maria da luz encontrou valores mais altos na caderneta – pros moradores do interior a caderneta de dívidas seria como a fatura de cartão de crédito – com data certa pra quitação – a quebra de confiança quase acarretou um assassinato – contudo a família de Dona Maria da Luz preferiu entregar suas posses a ser encarada pela comunidade de Santa Quitéria como uma família da qual um dos membros assassinou um membro renomado da elite local – em matéria de traição, as elites maranhenses são descoladas à medida que se descolam dos seus compromissos morais e políticos para com o restante da sociedade – contudo, por incrível que pareça, são os atraiçoados que se envergonham, se trancam dentro de suas casas ou se mudam para bem longe – para eles tudo se aparenta com o verbo trair – tanto que só resta esquecerem – e saírem de si mesmos e dos outros – quem sabe, em São Luis – um ideal refúgio?

Do alto de seus setenta e três anos, Dona Maria da Luz entocou muito bem suas dúvidas para que, numa conversa com um amigo de seu filho, a história de seu pai ficasse no ar numa noite desalumiada – Nem pensar em revanche, as nossas famílias hoje são amigas, se bem que – depois do fato – ela pouco compareceu a Santa Quitéria a não ser por um caso de vida ou de morte – e as saudades da sua cidade natal se embruteceram e, para alegrá-la, nos seus lugares vieram as atenções para com os filhos, a mãe e o comércio. Sim, uma dona de casa e uma comerciante – zanzando de um lado para outro – a sua rotina, via de regra, orientava-se no atendimento dos pequenos desejos de sua família e de seus clientes. Com o tempo, as vendas no comércio despencaram bastante – um pouco fruto da inércia natural de uma família bem postada no bairro e outro tanto fruto da concorrência que novos comerciantes praticavam – contudo, os filhos já estavam encaminhados para o serviço público – então, cerrou as portas do comércio granjeando mais tempo para si.

Mesmo com o tempo de sobra, a vida de dona Maria da Luz se manteve dividida – não entre a família e o comércio – e sim entre a cidade de São Luís e a cidade que seu filho mais novo morava. Sempre fora dedicada a ele e por isso votara em seu candidato nas eleições – Depois de votar nesse candidato, como ela reagiria ao saber que o mal infligido à sua família décadas atrás com a traição se repetia agora com inúmeras famílias no Baixo Parnaíba maranhense, em especial dos municípios de Brejo e Buriti, que vêem lesados em seus direitos de décadas à terra e aos recursos hídricos pelos apóstolos do agronegócio sem que os grupos políticos e o poder judiciário movam uma palha sequer ou pelo menos sujem um pouco as suas batas na tentativa de defendê-las? Como reagiria ao saber que a juíza de Buriti declarou que não poderia fazer nada com relação aos desmatamentos ilegais porque estava temporariamente ocupando o cargo? Como reagiria ao saber que a comunidade de São João dos Pilões, município de Brejo, que lapida pilões em pés de pequi precisa urgentemente de uma autorização do Ibama para transportar pequis de outras áreas para onde moram porque os sojicultores desmataram boa parte do Cerrado? Como reagiria ao saber que grupos econômicos como João Santos, de Coelho Neto, e Gerdau, de Rosário, pretendem destinar partes do Baixo Parnaíba para fins energéticos – cana de açúcar, por um lado, e eucalipto, pelo outro?

Mayron Régis, jornalista

in www.EcoDebate.com.br – 13/10/2006