Amazônia: Reminiscências das terras dos castanhais, por Rogério Almeida
Houve um tempo em que os castanhais das terras do Araguaia-Tocantins1 foram livres. Os rios configuravam as principais vias de transporte. Os dias reinaram assim até o ano de 1920 do século passado. Na época a Amazônia respirava o ocaso do ciclo do extrativismo da borracha. O Comércio dos irmãos Chamom fazia o aviamento2 nos municípios de Marabá e Tucuruí (na época Alcobaça), sudeste do Pará. Desta forma era ativado o extrativismo da castanha3.
Enquanto cabia as empresas Bittar irmãos, Dias & Cia, Nicolau da Costa e A Borges & Cia, entre tantos, a empresa em Belém. Europa e Estados Unidos foram o destino da produção. Explica a pesquisadora Marília Emmi, na obra, A Oligarquia do Tocantins e o Domínio dos Castanhais.
Até então os índios gavião e seus sub grupos(krikateje, parketeje e akrikateje), bem como, kaapor, xicrin, atikum, guajajara, suruí, entre outros povos, eram os senhores do lugar. Ainda que o estado viesse a declarar durante o regime militar a porção de terras um vazio demográfico. Trabalho escravo, mandonismo e clientelismo davam contorno ao poder dos coronéis.
Conforme pesquisa de Emmi, o comerciante e político Deodoro de Mendonça e sua parentela hegemonizam no domínio dos castanhais até 1940. No período aportaram na região descendentes de sírios-libaneses, família Mutran, oriunda do município de Grajaú, Maranhão, que data da década de 1920. Já em 1930 arrenda e adquire várias terras. Coube a empresa A Borges & Cia aviar a família.
Os municípios de Marabá e São João do Araguaia concentravam os castanhais. Vários foram os mecanismos que transformaram terras livres em terras de negócios. O domínio da terra refletia o poder político baseado no tronco familiar.
O bom negócio residia na coleta e comércio da castanha. Através da força, arrendamento e aforamento, as terras públicas foram transferidas para o poder privado. Desta forma a família Mutran, a partir de 1950, vai se configurar como senhora da vida e da morte de muitos camponeses e coletadores de castanha. Na pesquisa de Emmi, há indicadores que em 1960, a família chegou a ser detentora de 80% dos castanhais.
MUTRAN – A senhora dos Castanhais
Na paisagem das oligarquias dos castanhais, a dos Mutran se tornou o de maior destaque. Tornaram-se notáveis na história da região pelo abuso da violência. A condição de escravidão, ou modo similar de submissão, continua a ocorrer nas terras do Araguaia Tocantins. O modelo é apenas uma face das várias modalidades de violência que povoam atmosfera da região. Mister em crimes impunes envolvendo a luta pela terra. A primazia entre os mortos é de camponeses e seus apoiadores.
São muitas as acusações de crimes que pesam nas costas do clã dos Mutran. Assassinatos, corrupção na administração da prefeitura de Marabá, manutenção de cemitérios clandestinos em “suas” fazendas, submissão de trabalhadores rurais à condição de trabalho escravo.
Nas duas listas já divulgadas pelo Ministério Público do Trabalho (MPT), constam três propriedades da família. As “listas sujas” do trabalho escravo foram divulgadas nos anos de 2003 e 2004. As propriedades são: Fazenda Cabaceiras, ocupada pelo MST desde 26 de março de 1999, a Fazenda Peruano, também ocupada pelo MST em abril de 2004, e a Mutamba, onde o MST ocupou, mas não conseguiu se manter. Sob força de liminar os nomes das fazendas foram retirados nas listas. Desta forma o fazendeiro pode pleitear financiamento público.
Na página www.repoterbrasil.com.br, a reportagem de Leonardo Sakamoto, divulgada no último dia 30 de julho de 2004, denuncia que a empresa Jorge Mutran Exportação e Importação Ltda., foi obrigada a pagar a multa de R$ 1.350.440,00, por ter sido autuada mais de uma vez por trabalho escravo em sua fazenda Cabaceiras, em Marabá, sudeste do Pará. Trata-se da maior indenização a ser paga no Brasil por um caso de redução de pessoas à condição análoga a de escravo, à época. .
A reportagem de Sakamoto conta ainda que: “a sentença foi expedida por Jorge Vieira, da 2ª Vara da Justiça do Trabalho de Marabá, é o final de uma ação civil pública movida pelo Ministério Público do Trabalho. Os réus aceitaram as determinações do MPT e o juiz homologou a sentença. A ela não cabe recurso. A reportagem apurou que, caso não tivesse sido feito um acordo, em caso de condenação o valor da sentença poderia ser maior”. Os responsáveis pela empresa citados no processo da Cabaceiras são os irmãos Evandro (dono também da fazenda Peruano), Délio e Celso Mutran e Helena Mutran
Sakamoto explica ainda que: “os bens dos citados foram indisponibilizados pela Justiça. Se pagarem a indenização – o que estava previsto para começar em 27 de agosto de 2004- eles serão desbloqueados. O não pagamento acarretará em aumento do valor, que passará a R$ 3.858.400,00.” A multa deveria ter sido paga em 18 parcelas.
A fazenda Cabaceiras mantinha cemitério clandestino. A denuncia veio à tona em setembro de 1999, através de reportagem assinada por Ismael Machado, publicada na revista Caros Amigos, São Paulo, edição de número 30. A presença de cemitério clandestino na fazendeira Cabaceiras foi realizada por uma testemunha de 64 anos, que foi mantida no anonimato. O depoimento ocorreu no dia 21 de julho na Procuradoria da República do Pará.
A Quincas Bonfim e Sebastião Pereira Dias (Sebastião da Teresona), lendários pistoleiros da região, cabia a contratação de peões para a derrubada da mata nativa e implantação de pasto. Além da contratação de peões constava na rotina dos pistoleiros a eliminação de desafetos e peões insubordinados. Conta a matéria de Machado que pelo menos 40 homicídios ocorreram entre os anos de 1982 a 1989, a década de maior incidência de violência na região. Antes de pertencer ao clã Mutran, a Fazenda Cabaceiras foi administrada pela empresa Nelito Indústria e Comércio S/A..
No depoimento colhido pelo procurador Ubiratan Cazetta, são citados como responsáveis pelas mortes ocorridas na Cabaceiras os Mutran, Evandro, Osvaldo dos Reis Mutran, codinome de Vavá Mutran, Bené, Guido e Junior. Os dois últimos chegaram a exercer mandatos de vereadores em Marabá pela legenda do PMDB.
A testemunha que diz ter trabalhado na fazenda conta ter presenciado as mortes. Ela narra que quando ocorria pagamento dos peões, os pistoleiros faziam tocaia, pegavam o dinheiro, e traziam de volta para o patrão. É daí que surge o nome de localidades próximas aos castanhais batizadas com o nome sugestivo de some homi .
Um ancião explica que se tratava de tocaia para recuperação no numerário dos trabalhadores dos castanhais, no caso dos que recebiam a remuneração pela coleta. O dinheiro era tomado e os peões encaminhados ao encontro com deus ou o diabo. Quem sabe?.
Nesses conformes as terras não estariam cumprindo a sua função social da terra, como consta na Constituição Federal, posto a sua não utilização natural, a produção, e o não respeito à legislação trabalhista. O que faltaria para desapropriar?
No ano de 1987 o então ministro da reforma agrária Jader Barbalho promoveu um processo de desapropriação de fazendas nas regiões sul e sudeste do Pará. Na análise de pesquisadores das academias locais e de além mar, há o consenso de que a desapropriação serviu muita mais de socorro financeiro aos fazendeiros da região, que respiravam dias de fragilidade econômica e política.
Os Mutran teriam sido os mais beneficiados. Ainda que a luta tenha sido encaminhada pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais de São João do Araguaia, em Brasília ganhou outro contorno. Passadas quase três décadas desde o que se convencionou chamar de redemocratização, oligarcas ainda como Jader Barbalho, José Sarney e Antonio Carlos Magalhães, ainda influenciam nos bastidores da capital do país.
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VAVÁ- O CHEFE DA FAMÍLIA
Osvaldo dos Reis Mutran, vulgo Vavá Mutran foi julgado pelo Júri Popular e absolvido no dia 24 de agosto de 2005, em Marabá, pelo assassinato de uma criança de oito anos, David Ferreira Abreu de Souza, crime ocorrido em 2002, Km 07, Nova Marabá. O garoto foi morto com um tiro na cabeça quando jogava futebol em frente a uma propriedade do assassino. Na ocasião populares provocaram uma quebra-quebra na casa do chefe do clã.
A Sociedade de Defesa dos Direitos Humanos (SDDH) atua no caso como Assistência da Acusação do Ministério Público. No corolário de impropérios cometidos pelo miliante de 73 anos, como se diz na crônica policial, consta ainda a morte de um fiscal da Fazenda do Estado, Daniel Lira Mourão, idos de 1990. .
Entre as décadas de 1950 até meados de 1980 tal notícia soaria como galhofa no oco dos ouvidos dos chefes dos castanhais da região.
O filho de Nagib foi prefeito nomeado de Marabá e deputado estadual. Vavá é pai de dos filhos, Nagib Neto que foi prefeito de Marabá e Osvaldo Júnior, vereador – casado com Ezilda Pastana, juíza em Marabá. Vavá tem dois irmãos, Guido – com um filho ex- vereador (Guido Filho) – e Aziz. Vavá e Nagib Neto tiveram os mandatos cassados. Conta Sakamoro em reportagem. Júnior veio a morrer no fim do ano passado quando brincava de roleta russa.
Por conta da execução do fiscal da Receita foi alvo de uma Comissão Parlamentar de Inquérito, cassado do cargo de deputado estadual e condenado a oito anos de prisão. Não cumpriu a pena integralmente. Pelo crime cometido Vavá foi premiado com indulto (perdoado). Mourão foi morto por não concordar em deixar o fazendeiro passar gado sem registro, o que o livraria de pagar impostos. Já Nagib, o filho foi cassado por corrupção na prefeitura e condenado a repor ao erário público cerca de um milhão.
Sinais do fim?
Na memória política da região consta que era impossível a vitória em um pleito eleitoral sem negociar com a oligarquia. Nos dias atuais os sinais de fragilidade são latentes. No legislativo do município de Marabá não possui nenhum assento. Já na alça estadual, perdeu o único que tinha, Cristina Mutran, que veio a ser candidata a vice do executivo municipal, ficando apenas em terceiro lugar no recente pleito.
Se antes era normal a presença de representantes da família nas páginas sociais, tem se tornado freqüente o nome da mesma em manchetes desprovidas da pompa da “nata da sociedade”. A fazenda Volta do Rio, localizada no município de Eldorado do Carajás, foi desapropriada para fins de reforma agrária.
26 de Março- uma ocupação simbólica do Pará
A desapropriação da fazenda Cabeceiras por crime ambiental e trabalho escravo chegou a ser comemorada nos dais 18 e 19, em outubro de 2004. A festa para a comemoração do decreto assinado pela presidência da República, numa segunda feira, 18, para a desapropriação da Fazenda Cabaceiras, foi na Universidade Federal do Pará (UFPA), Marabá, sudeste do Pará.
A propriedade em nome da Jorge Mutran Importação e Exportação LTDA, com 9. 774 hectares, fica em Marabá. Guedes de Guedes, coordenador da Secretaria de Desenvolvimento Agrário Nacional do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária INCRA), representou o ministro do Desenvolvimento Agrário, Miguel Rosseto, que não participou do evento por motivo de saúde.
Pesaram a favor da desapropriação o uso constante de mão obra escrava pelo pecuarista Evandro Mutran, reincidente no expediente, e “dono” da área, que recebeu a maior multa no Brasil pelo uso de trabalho degradante. A coordenação do MST comemora com entusiasmo a conquista. Ainda mais por se trata de um clã imortalizado na história do Pará pelo uso da violência contra trabalhadores rurais, e apropriação de terras de forma ilegal.
Há sete anos, cerca de 350 famílias do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) mantêm parte da propriedade ocupada. A ocupação ocorreu o dia 26 de março de 1999, quando da passagem de ano de morte dos dirigentes do MST, Fusquinha e Doutor, tocaiados por fazendeiros no município de Paraupebas. Lá as famílias produzem e estudam. O assassinato dos dirigentes, como muitos outros, ainda permanece impune. O MST e Comissão Pastoral da Terra (CPT) planejam pedir a federalização do crime.
A desapropriação que se encontra sob Mandado de Segurança no Superior Tribunal Federal (STF), foi distribuído em fevereiro do ano passado para o Ministro Sepúlveda Pertence. O caso da fazenda é inédito, avalia o presidente do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), Rolf Hackbart. ‘É um processo mais complexo, mas não é só saber [se a fazenda] produz ou não produz”, afirmou Hackbart.
Para o Incra, pesou na desapropriação o ‘trabalho degradante” na propriedade, os danos ao meio ambiente e a produtividade. (Folha de São Paulo, 19 de outubro/2004).
PRODUÇÂO DOS SEM TERRA
Mesmo contra a maré podemos avaliar como significativa a produção. No ano de 2004 o setor de produção do MST do Pará contabiliza que o acampamento produziu o equivalente a R$ 853.323,00. Incluídas as produções que os técnicos chamam de lavoura branca (arroz, milho, farinha, fava, feijão, banana, mandioca, etc), criação de pequenos animais e hortaliça.
Nesse portfólio a mandioca é o que responde com a maior produção, seguido do arroz. Na criação de pequenos animais se destaca a criação de frango, com cerca de mil bicos. No setor de hortaliça abóbora e quiabo são os produtos principais. A expectativa é de melhoria da produção, posto o investimento na formação de assentados e ocupantes em cursos de agronomia (superior) e técnicos agrícolas (médio).
No ano passado os moradores do acampamento, por ocasião da passagem de mais um ano de luta, distribuíram parte da produção numa feira de cem metros no BR -150, que fica em frente ao acampamento. Ironia das ironias, a mesma do massacre de Eldorado dos Carajás, prestes a completar a primeira década de impunidade.
Como manter o ânimo das 200 famílias que permanecem na área ocupada ante as adversidades? Por conta de sua proximidade com o município de Marabá, 35 Km, é alvo constante de pesquisadores da região, de outros estados do Brasil e mesmo do estrangeiro. Suíços, canadenses, franceses e americanos já visitaram a área. O lugar que já conta com energia, possui até pequenas mercearias e quatro templos religiosos. Um católico e três evangélicos.
A expectativa da produção para este ano não é boa. Os acampados reclamam da fraqueza da terra. À cada dia do retardo do processo de desapropriação, os lavradores são obrigados a lavrar terras mais distantes do acampamento, onde também coletam ouriços da castanha e cupuaçu. Nos quintais dos barracos os moradores já plantaram acerola, cupuaçu, carambola, ameixa, banana e jaca. Uma senhora ocupante teme um dia ter de sair do lugar.
*Rogério Almeida é autor do livro Araguaia-Tocantins: fios de uma História camponesa/2006, mestrando do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA) da Universidade Federal do Pará (UFPA). Colabora com a rede Fórum Carajás www.forumcarajas.org.br
1 A bacia do Araguaia-Tocantins banha três regiões do território nacional: Norte, parte do Nordeste e Centro Oeste. Mede 813.674 Km2 e corta os estados do Maranhão, Tocantins, Pará, Goiás, Mato Grosso e parte do Distrito Federal. Dois biomas integram a bacia do Araguaia -Tocantins, cerrado e a Floresta Amazônica, com predomínio do primeiro. Para melhor compreender a disputa pela terra na região sugiro a leitura da obra A Oligarquia do Tocantins e o Domínio dos Castanhais, da pesquisadora e professora da Universidade Federal do Pará (UFPA), Marília Emmi,1999.
2 Aviamento consistia no forma de poder dos comerciantes com os coletadores de castanha. Os comerciantes adiantavam suprimentos necessários aos dias de trabalho floresta, cabendo ao coletador a venda obrigatória da castanha ao comerciante.
3 Castanha do Pará (Bertholletia Excelsa), é uma frondosa árvore. Em remotos tempos, abundou em vários estados do Norte. É do ouriço, o fruto, que se extrai a castanha.
Publicado no EcoDebate, www.ecodebate.com.br, 21/03/2006