Por que morrem os cortadores de cana? por Francisco Alves
Adital – Segundo a Pastoral do Migrante, entre as safras 2004/2005 e 2005/2006 morreram 10 cortadores de cana na Região Canavieira de São Paulo. Eram trabalhadores jovens, com idades variando entre 24 e 50 anos; todos eram migrantes, que tinham vindo de outras regiões do país (Norte de Minas, Bahia, Maranhão, Piauí) para o corte de cana. As causa mortis em seus atestados de óbitos são vagas a respeito do que ocasionou verdadeiramente as mortes, os atestados dizem apenas que morreram por parada cardíaca.
Para entendermos as razões destas mortes é necessário entendermos o processo de trabalho a que os cortadores de cana estão submetidos nesta atividade produtiva. O processo de trabalho passou por mudanças significativas da década de 80 até a presente década. Na década de 80, logo no seu início, o país, e mais especificamente o setor sucro-alcooleiro, vivia o seu período áureo, em plena vigência do Proálcool, na sua segunda fase (após 1979), que incentivava a produção de álcool hidratado e anidro, produzido em destilarias autônomas, direcionadas a atender ao enorme crescimento da demanda por álcool, derivadas da produção nacional de automóveis movidos unicamente a este novo combustível. O Proálcool foi o maior programa público mundial de produção de combustível alternativo aos derivados do petróleo.
Em decorrência do Proálcool cresceu a produção de cana-de-açúcar, novas destilarias e usinas foram instaladas e cresceu o número de empregos diretos em toda a cadeia produtiva; da indústria produtora de máquinas e equipamentos para o setor sucro-alcooleiro à comercialização de álcool e açúcar, isto é, houve a criação de novos postos de trabalho industrial a novos postos de trabalho agrícola.
Naquele período cresceu também a produtividade da cultura agrícola, medida em quantidade de cana por hectare ocupado com a atividade que saiu de 50 toneladas por hectare e atingiu mais de 80, entre as décadas de 50 e 80. Cresceu também a produtividade do trabalho no corte de cana, medida em toneladas de cana cortadas por dia por homem ocupado. Se na década de 60 a produtividade do trabalho era, em média, de 3 toneladas de cana por dia de trabalho, na década de 80 a produtividade média passa para 6 toneladas de cana por dia por homem ocupado e no final da década de 90 e início da presente década, atinge 12 toneladas de cana por dia.
O processo de trabalho no corte de cana consistia, na década de 80, no trabalhador cortar um retângulo; com 8,5 metros de largura, em 5 ruas (linhas em que é plantada a cana), por um comprimento que varia de trabalhador para trabalhador, que é determinado pelo que ele consegue cortar num dia de trabalho. Este retângulo é chamado pelos trabalhadores de eito e o comprimento do eito varia de trabalhador para trabalhador, porque depende do ritmo de trabalho e da resistência física de cada um e é esta distância, que é medida ao final do dia e será o indicador do seu ganho diário. Estes metros lineares de cana, multiplicados pelo valor da cana pesada pela usina, dá o valor do dia de trabalho no corte de cana para cada trabalhador. Estima-se que para cortar 6 Toneladas de cana num dia, considerando uma cana de primeiro corte, de crescimento ereto, que o comprimento do eito é de aproximadamente 200 metros. O trabalhador, além de cortar a cana contida na área deste retângulo (1.700 m²), deve cortar também as pontas e transportar a cana para a linha do meio (3ª linha) que dista 3 metros de cada uma das extremidades do eito.
O pagamento dos trabalhadores era e é feito a partir da quantidade de cana que cortada por dia de trabalho, portanto, era e ainda é um pagamento por produção. Os motivos que levam as usinas a adotarem o pagamento por produção, que é uma das formas de trabalho, já denunciada por Adam Smith no final do século XVIII e por Karl Marx no século XIX, como uma das mais desumanas e perversas, pois o trabalhador tem o seu ganho atrelado a força de trabalho despendida por ele por dia. É verdade que tanto Adam Smith quanto Karl Marx denunciavam este trabalho, chamando-o de perverso e desumano, analisando apenas esta forma de trabalho em situações em que o trabalhador controlava o seu processo de trabalho e tinham, ao final do dia, pleno conhecimento do valor que tinham ganho, isto porque conheciam o valor do trabalho executado. No corte de cana é diferente, porque os trabalhadores só sabem quantos metros de cana cortaram num dia, mas não sabem, a priori, do valor do metro de cana para aquele eito cortado por ele, este desconhecimento é devido a que o valor do metro de cana do eito depende do peso da cana, que varia em função da qualidade da cana naquele espaço e a qualidade da cana naquele espaço depende, por sua vez de uma série de variáveis (variedade da cana, fertilidade do solo, sombreamento etc.). Nestas condições, as usinas pesam a cana cortada pelos trabalhadores e atribuem o valor do metro, através da relação entre peso da cana, valor da cana e metros que foram cortados. Tudo isto é feito nas usinas, onde estão localizadas as balanças, sem controle do trabalhador. Portanto, entre aquelas situações de trabalho analisadas pelos dois pensadores nos séculos XVIII e XIX e as praticadas na cana nos séculos XX e XXI há uma enorme distância, que é o não controle do salário e do processo de trabalho pelos trabalhadores, este é controlado pelas usinas.
Os trabalhadores trabalham no corte de cana por produção, em pleno século XXI, sem saberem quanto ganham, porque isto depende de quanto cortam. Além disto, mesmo cortando muitos metros podem ter um ganho pequeno, porque o valor do metro depende de uma conversão que não é controlada pelos trabalhadores e sim pelas usinas. Portanto, se todos os autores declaram que o pagamento por produção, além de ser uma forma de salário arcaica, perversa e desgasta os trabalhadores, porque sua produção e salário dependem de seu esforço físico, na cana esta forma de trabalho é mais perversa porque o ganho não depende dos trabalhadores, mas de uma conversão feita pelo departamento técnico das usinas.
Há inúmeros casos de desavenças entre trabalhadores e usinas derivados desta conversão de toneladas de cana em metro. Estas desavenças foram responsáveis, inclusive pela deflagração de uma greve em 1986, que começou nas cidades de Leme, no Estado de São Paulo e de lá se alastrou para outras cidades e regiões canavieiras do Estado e do país. Esta já era a segunda grande greve realizada pelos trabalhadores, após a greve de Guariba de 1984 contra o sistema de corte em 7 ruas.
Na greve de 1986 os trabalhadores reivindicavam o pagamento por metro de cana cortado e não por tonelada. A reivindicação era simples: cada metro de cana cortada, dependendo do tipo de cana (cana de primeiro corte, cana de segundo e demais cortes, cana de ano e meio, cana caída e enrolada) teria um preço definido no acordo coletivo de trabalho, os trabalhadores, ao final do dia receberiam um recibo (pirulito), onde viria gravado, a quantidade de metros cortadas naquele dia e o valor do metro de cana naquele eito.
Os empresários contra-argumentavam, dizendo que era impossível para a usina adotar o pagamento por metro, porque a sua unidade de medida, utilizada em todas as etapas do processo produtivo, era a tonelada de cana. Na verdade a argumentação dos empresários escondia o essencial. Se os trabalhadores adquirissem o controle do processo de trabalho e o controle do seu pagamento, as usinas perderiam o principal meio de pressão que as empresas dispõem para aumentar a produtividade do trabalho. Isto porque o processo de trabalho no corte de cana depende única e exclusivamente da destreza do trabalhador, isto é, depende de um conjunto de atividades manuais, exercida pelos trabalhadores, independente da administração do processo. No corte de cana os trabalhadores têm o controle da atividade, o que não ocorre em outros processos de produção, que através do sistema de máquinas, há a subordinação do trabalhador e do trabalho ao sistema, onde os aumentos de produtividade são alcançados através do sistema de máquinas. No corte de cana, o trabalhador recebe o eito de cana definido pelo supervisor da turma e realiza as atividades exigidas: começa a cortar pela linha central, a linha que será depositada a cana, em seguida corta as duas linhas laterais à central, de forma a que todas as linhas do eito sejam cortadas simultaneamente, sem deixar linhas sem cortar (deixar telefone).
No corte, especificamente, o trabalhador abraça um feixe de cana (contendo entre cinco e dez canas) e curva-se para cortar a base da cana. O corte da base tem que ser feito bem rente ao chão, porque é no pé da cana que se concentra a sacarose. O corte rente ao chão não pode atingir a raiz para não prejudicar a rebrota. Depois de cortadas todas as canas do feixe o trabalhador corta o palmito, isto é a parte de cima da cana, onde estão as folhas verdes, que são jogadas ao solo. Em algumas usinas é permitido aos trabalhadores o corte do palmito no chão, na fileira do meio, onde os feixes são amontoados. Neste caso, além de cortar o palmito o trabalhador tem que realizar um movimento com os pés, para separar as pontas das canas amontoadas na linha central. Em algumas usinas as canas amontoadas na fileira central devem ser dispostas em montes, que distam um metro um do outro, em outras usinas é permitido ao trabalhador fazer uma esteira de canas amontoadas sem a necessidade dos montes. Com isto, fica claro que a quantidade cortada por dia por trabalhador depende mais, para ganhar mais, e de sua força física e habilidade para execução da atividade.
Eu comparo o cortador de cana a um corredor fundista, porque os trabalhadores com maior produtividade não são necessariamente os que têm maior massa muscular, são os que têm maior resistência física para a realização de uma atividade repetitiva e exaustiva, realizada a céu aberto, sob o sol, na presença de fuligem, poeira e fumaça, em alguns casos, e por um período que varia entre 8 a 12 horas de trabalho diário.
Um trabalhador que corte 6 toneladas de cana, num talhão de 200metreos de comprimento, por 8,5 metros de largura, caminha, durante o dia uma distância de aproximadamente 4.400 metros, despende aproximadamente 50 golpes com o podão para cortar um feixe de cana, o que equivale a 183.150 golpes no dia (considerando uma cana em pé, não caída e não enrolada e que tenha uma densidade de 5 a 10 canas a cada 30cm.). Além de andar e golpear a cana, o trabalhador tem que, a cada 30cm, se abaixar e se torcer para abraçar e golpear a cana bem rente ao solo e levantar-se para golpeá-la em cima. Além disto, ele ainda amontoa vários feixes de cana cortados em uma linha e os transporta até a linha central. Isto significa que ele não apenas anda 4.400 metros por dia, mas transporta, em seus braços, 6 toneladas de cana, com um peso equivalente a 15 Kg, a uma distância que varia de 1,5 a 3 metros.
Além de todo este dispêndio de energia andando, golpeando, contorcendo-se, flexionando-se e carregando peso, o trabalhador sob o sol utiliza uma vestimenta composta de botina com biqueira de aço, perneiras de couro até o joelho, calças de brim, camisa de manga comprida com mangote, também de brim, luvas de raspa de couro, lenço no rosto e pescoço e chapéu, ou boné. Este dispêndio de energia sob o sol, com esta vestimenta, leva a que os trabalhadores suem abundantemente e percam muita água e junto com o suor perdem sais minerais e a perda de água e sais minerais leva a desidratação e a freqüente ocorrência de câimbras. As câimbras começam, em geral, pelas mãos e pés, avançam pelas pernas e chegam no tórax, o que provoca fortes dores e convulsões, que fazem pensar que o trabalhador esteja tendo um ataque nervoso. Para conter as caimbas e a desidratação, algumas usinas já levam para o campo e ministram aos trabalhadores soro fisiológico e, em alguns casos suplementos energéticos, para reposição de sais minerais.
O fim da greve de 1986 só foi alcançado quando acordou-se que o pagamento dos trabalhadores seria feito a partir da tonelada de cana convertida em metro linear, com a possibilidade de controle pelos trabalhadores desta conversão, que deixava de ser apenas uma atribuição técnica dos funcionários das usinas, mas podiam ser fiscalizadas pelos trabalhadores e seria feita da seguinte forma:
v Ao início do trabalho, de manhã cedo, um caminhão, chamado de campeão vai ao local de corte;
v Este caminhão é cheio com cana colhida de três pontos diferentes do talhão, para realizar uma amostra representativa da qualidade e especificidades da cana no local;
v Os trabalhadores podem participar da escolha dos três pontos;
v Este caminhão depois de cheio com cana colhida dos três pontos do talhão vai para a usina para ser pesado, já sabendo que aquela carga corresponde a um determinado número de metros lineares;
v Os trabalhadores podem acompanhar o caminhão para verificar a pesagem na balança das usinas e se certificarem que não há roubo;
v Depois de realizada a pesagem, é realizada a conversão de tonelada de cana para metro; já atribuído o valor do metro, na medida em que a tonelada de cana paga aos trabalhadores já tem seu valor definido pelo acordo coletivo;
v Este valor do metro obtido da conversão é informado aos trabalhadores no canavial antes do fim do dia;
v No fim do dia de trabalho cada eito de cana de cada trabalhador daquele talhão é medido através de um compasso de ponta de ferro com 2 metros de largura entre uma ponta e outra;
v Feita a medição do eito é elaborado, no campo, um recibo (pirulito) onde consta a quantidade de metros cortados por cada trabalhador, o valor de cada metro e o total de rendimentos obtidos pelos trabalhadores naquele dia de trabalho.
Apesar de todo este procedimento constar dos acordos coletivos desde 1986, na prática, ele nunca funcionou, porque a base para o seu funcionamento era a participação dos trabalhadores nas seguintes etapas: i)escolha dos três pontos representativos da cana do talhão; ii) medição em metros da cana para carregar o campeão; iii) fiscalização da pesagem da cana na usina e iv) participar do cálculo de conversão da tonelada em metro.
Como os trabalhadores são remunerados por produção, aqueles que se dispõem a acompanhar aquelas 4 etapas, que exigem participação dos trabalhadores, perdem, no mínimo meio dia de trabalho, portanto se não trabalham, não ganham. Além disto, aqueles que se dispõem a participar se sentem marcados pelos gatos, fiscais e apontadores e pelas usinas e temem perderem seus empregos.
O que passou a ocorrer, na prática, é que mesmo nas usinas que mantiveram o campeão, a conversão de tonelada em metros é de responsabilidade exclusiva das usinas e podem conter roubos.
A partir da década de 90 houve um grande aumento da produtividade do trabalho. Os trabalhadores para manterem seus empregos na cana necessitam hoje cortar no mínimo 10 toneladas de cana por dia, para se manterem empregados; a média cortada expandiu-se para 12 toneladas de cana por dia. Portanto a produtividade média cresceu em 100%, saiu de 6 toneladas/homem/dia, na década de 80, e chegou a 12 toneladas de cana por dia, na presente década.
O fato dos trabalhadores hoje terem uma produtividade duas vezes superior a da década de 80 se deve a um conjunto de fatores:
v O aumento da quantidade de trabalhadores disponíveis para o corte de cana e esta maior disponibilidade se devem a três fatores:
1. aumento da mecanização do corte de cana;
2. o aumento do desemprego geral da economia, provocada por duas décadas de baixo crescimento econômico e
3. expansão da fronteira agrícola para as regiões do cerrado, atingindo o sul do Piauí e a região da pré-amazônia maranhense, destruindo as formas de reprodução da pequena propriedade agrícola familiar, predominante nestes estados.
v Possibilidade de seleção mais apurada pelos departamentos de recursos humanos das usinas. Esta seleção mais apurada de trabalhadores leva a: seleção de trabalhadores mais jovens, redução da contratação de mulheres e a possibilidade de contratação de trabalhadores oriundos de regiões mais distantes de São Paulo (Norte de Minas, Sul da Bahia, Maranhão e Piauí).
v · A seleção mais apurada permite que as usinas implementem a contratação por período de experiência , onde os trabalhadores que não conseguem atingir a nova média de produção, 10 toneladas de cana por dia, são demitidos antes de completarem três meses de contrato.
v Um trabalhador que corta hoje 12 toneladas de cana em média por dia de trabalho realiza as seguintes atividades no dia:
v · Caminha 8.800 metros;
v · Despende 366.300 golpes de podão;
v · Carrega 12 toneladas de cana em montes de 15 k em média cada um, portanto, ele faz 800 trajetos levando 15 K nos braços por uma distância de 1,5 a 3 metros;
v · Faz aproximadamente 36.630 flexões de perna para golpear a cana;
v · Perde, em média 8 litros de água por dia, por realizar toda esta atividade sob sol forte do interior de São Paulo, sob os efeitos da poeira, da fuligem expelida pela cana queimada, trajando uma indumentária que o protege, da cana, mas aumenta a temperatura corporal.
Com todo este detalhamento pormenorizado da atividade do corte de cana, fica fácil entendermos porque morrem os trabalhadores rurais cortadores de cana em São Paulo. A solução para este problema, ao meu ver, não se dará através mudanças que não vão ao cerne da questão. O que vai ao centro da questão, que são as mortes dos trabalhadores cortadores de cana pelo excesso de trabalho é o pagamento por produção. Enquanto o setor sucro-alcooleiro permanecer com esta dicotomia interna: de um lado, utiliza o que há de mais moderno em termos tecnológicos e organizacionais; uma tecnologia típica do século XXI (tratores e máquinas agrícolas de última geração, agricultura de precisão, controlada por geo-processamento via satélite etc.); mas manterem, de outro lado, relações de trabalho, já combatidas e banidas do mundo desde o século XVIII, trabalhadores continuarão morrendo. Isto porque os 10 que morreram nas duas últimas décadas são uma amostra insignificante do total que deve morrer todas as safras clandestinamente. Ao longo dos últimos 20 anos que me dedico à análise das condições de vida e trabalho dos trabalhadores rurais, colhi vários depoimentos de trabalhadores que relatavam mortes como as agora tornadas públicas através do excelente trabalho da Pastoral do Migrante de Guariba.
www.pastoraldomigrante.org.br
* Professor Adjunto do Departamento de Engenharia de Produção da UFSCar
(www.ecodebate.com.br) artigo originalmente publicado na Agência de Informação Frei Tito para a América Latina, em 23/02/2006