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BR -163: dias piores virão ? por Rogério Almeida

A década de 1970 é festejada além da conquista do tri campeonato de futebol pelo escrete canarinho, pelo “milagre econômico”. Para a Amazônia é marcante o projeto de integração da região ao resto do país, numa lógica de planejamento periférico e vertical desenhada nos gabinetes dos militares. A regra ditava a ampliação da fronteira agrícola e exploração de matérias primas para a conquista da fronteira. Na região do Araguaia pipocava a guerrilha. Com vistas a exploração das riquezas minerais e ampliação da agricultura e pecuária, obras de infra surgiram na floresta como símbolos da modernidade. Entre elas a BR 163, que liga Cuiabá, no Mato Grosso a Santarém, no oeste do Pará.

Atualmente o assunto BR 163, hegemoniza o debate nas universidades locais e nacionais e internacionais, quando se trata sobre a Amazônia. Discussão que envolve ainda associações de trabalhadores, ambientalistas, setores da economia nacional, internacional, governos federal e estaduais. No centro da questão a tentativa de construção de um referencial de organização do território. Na fauna de atores sociais que disputam uso da terra e recursos naturais constam: sojeiros, madeireiros, garimpeiros, populações indígenas, extrativistas, pecuaristas, agricultores, mineradoras, etc.

Grilagem de terras, exploração ilegal de madeira, elevado índice de trabalhadores em condições de escravidão, execuções de trabalhadores rurais e seus apoiadores ajudam a compor a aquarela da região. Entre os dias 19 e 20 de setembro, a Universidade Federal do Pará (UFPA), através do Núcleo de Altos Amazônicos (NAEA), em parceira Agência de Desenvolvimento da Amazônia (ADA- antiga SUDAM), Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG), entre outros, debateram o processo de Zoneamento Econômico Ecológico (ZEE), encaminhado pelo governo federal em parceria com os estados do Amazonas, Pará e Mato Grosso. Na ocasião, a obra dividida em quatro volumes de autoria do pesquisador Jean Hébette, Cruzando a fronteira: 30 anos de estudo do campesinato na Amazônia, que examina o processo desde a década de 1970, abriu o debate sobre o processo de ocupação na Amazônia.

Inspirado numa perspectiva desenvolvimentista e na busca incessante do superávit primário, o governo federal visa a semear e colaborar para a melhoria de obras de infra. Na lógica de transporte multi modal (rodovias, hidrovias, ferrovias), em seu Plano Plurianual (PPA), a BR 163, volta à pauta como uma prioridade de melhorar a circulação da produção de grãos, que se avoluma no centro-oeste do país. No celeiro dos interessados verifica-se além das multis, o rei da soja e também do governador do Mato Grosso, Blairo Maggi (PPS). O empreendimento inaugurará a mistura do tempero entre o público e o privado, na burocracia estatal batizado de PPP (Parceria Público Privado).

Se a oportunidade econômica faz brilhar cifrões nos olhos dos produtores de grãos, o contrário ocorre nas populações nativas (índios, extrativistas, trabalhadores rurais, ribeirinhos, etc). Nas linhas dos planejadores e dos ditos investidores, são sempre elevados à categoria de problema ao desenvolvimento. Alvo da coerção pública e privada. Como a registrada na reserva Raposa do Sol, Roraima, no dia 17, com a ataque de 150 pistoleiros armados. Se a possibilidade econômica revela-se excelente, alarmante os impactos sociais e ambientais se desnudam.

Experiências pretéritas contabilizam os passivos sociais e ambientais aos montes. Quase que inquestionáveis. A defesa do projeto é escudado num tal de desenvolvimento sustentável, ainda que não se discuta o paradoxo de tal tese, coadunar desenvolvimento baseado em uso intensivo de recursos naturais; e sustentável, ancorado em algo que exorta o socialmente justo, economicamente viável e ambientalmente zeloso. Como efetivar tal proposta numa democracia marcada pelo aleijão da concentração de terra e renda, em rincões onde a diferença não é reconhecida, onde o poder econômico e político imperam, em detrimento de qualquer parâmetro legal?

A produção de grãos pesa na balança comercial (estimada em 50%), ainda que os números das dívidas dos produtores sejam omitidos pelos principais meios de comunicação, que no caminho oposto esmeram-se na demonização do movimento camponês. Além da festejada produção de soja, que põe a baixo milhares de hectares da floresta amazônica e do cerrado, biomas que marcam a região, a paisagem é hoje a principal área de exploração ilegal de madeira, grilagens de terras e violência contra camponeses e seus apoiadores, como a irmã Dorothy, executada em fevereiro.

Tal violência contra camponeses e seus apoiadores e assessores deu o primeiro sinal com a morte de sindicalista Ademir Federecci (Dema), 36, (DEMA), executado em na região de Altamira, no ano de 2001, quando denunciava o processo de exploração ilegal de madeira, corrupção nos processo de financiamento da extinta Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM) e grilagens de terras. Em seguida teve a execução do dirigente sindical Bartolomeu Morais da Silva (o Brasília), morto por 21 tiros após sessão de tortura, ironicamente numa comunidade batizada de Castelo dos Sonhos. Já no ano de 2003, uma chacina envolvendo seis trabalhadores rurais e um médio produtor denuncia o deslocamento do morticínio do sul e sudeste do Pará rumo sudoeste do estado.

Maiores que os passivos sociais e ambientais e a possibilidade de faturamento financeiro, é a diversidade dos recursos naturais e sociais. A região abriga três imensas bacias hidrográficas (Teles Pires/Tapajós, Xingu e Amazonas) e dezenas de tributários. Dessa riqueza natural dependem aproximadamente dois milhões de habitantes, envolvendo diversos grupos sociais e econômicos. Assim explica o documento base do Plano de Desenvolvimento Sustentável.

No desenho do plano visa-se a integração de políticas que possibilite o desenvolvimento integrado da região. Ao se espelhar no passado, a fé entra em refluxo. Nesses instantes criam-se os tais espaços de participação pública, as audiências. Ainda que signifique um passo à frente, a assimetria marca o debate, que acaba por se assemelhar a espaços circenses, como os já registados nas audiências do projeto Juruti, oeste do Pará (exploração de bauxita, matéria prima para a produção de alumínio) e nas audiências do projeto da hidroelétrica de Estreito, oeste do Maranhão e norte do Tocantins.

Em tais espaços verificou-se a capacidade das empresas, muitas delas multis, em persuadir do sapateiro ao prefeito na formação do coral do “a favor” do projeto, sem muito explicar pontos delicados, como o deslocamento e reassentamentos de agricultores, índios, extrativistas, etc. Aqui o tempo sempre nubla. Isso sem falar nas imperfeições de engenharia, como a imprecisão do local da barragem de Estreito. Aos que desafinam o coro “do pró” olhares de esguelha, o deboche e mesmo ira dos contrários. Outro elemento recai sobre o hermetismo da linguagem técnica, o que provoca o monopólio da fala.

Na geografia o documento do governo federal explica que a área do projeto reúne 71 municípios, sendo 28 no Estado do Pará, 37 no Estado do Mato Grosso, e seis no Estado do Amazonas, perfazendo uma área total de 1,23 milhão de km2 (123 milhões de hectares) que correspondem a 24,6% da Amazônia Legal e 14,47% do território nacional. Desse total, 828.619 mil km2 encontram-se no Pará (66,41% do território estadual), 280.550 km2 no Mato Grosso (31,06% do estado) e 122.624 km2 no Amazonas (7,81% do estado). Aqui inclusa a já celebridade nacional, Terra do Meio, oeste do Pará. Já em Santarém alguns setores festejam a introdução da soja, e até um porto, construído pela empresa Cargil, no maior flagrante de indiferença à legislação ambiental. O mesmo foi erguido quando o processo encontrava-se na Justiça, sem uma definição. Comissão Pastoral da Terra (CPT) do Pará já engrossa os seus registros com mortes de trabalhadores da região, como denunciado numa audiência com a oficial da ONU, Asma Jahangir. Verifica-se assim a concentração do debate do ordenamento do território em certa medida no Pará, posto Mato Grosso já possuir um zoneamento.

Qual a trilha a seguir para a manutenção ou uso equilibrado dos recursos naturais e a inversão da gramática dessa modalidade de projeto, que tem por regra a exclusão dos nativos? A criação de áreas de reservas? Parece ser essa a indicação dos governo federal em alguma escala consensuado pelo governo do Pará, que juntos desejam a definição de nove áreas. Teríamos assim a criação de mosaico, que conforme os dados oficiais, garantiria a proteção de 60% do território em debate. O objetivo do projeto é criar, em parceria com o Ibama e o Governo do Estado, nove unidades de conservação, divididas nas Florestas Nacional ou Estadual de Trairão, do Amaná, do Crepori, do Iriri e do Jamanxim; os parques Nacional ou Estadual do Jamanxim e do Rio Novo; e a Área de Proteção Ambiental Tapajós. Estas reservas ocupariam áreas nos municípios de Jacareacanga, Novo Progresso, Trairão, Itaituba, Rurópolis e Altamira, todos localizados no Pará.

Que cenários se desenham no horizonte com a tentativa de disciplinamento do uso do território na BR 163 para a Amazônia? Em alguma medida os pesquisadores indicam que em certa escala já ocorre uma territorialização na região. Sojeiros, grande pecuária, mineradoras canadenses, empresas juniores de mineração, agricultores. No entanto indícios indicam que uma situação de caos é interessante para o processo de transferência de terras públicas para a iniciativa, principalmente no bioma cerrado, como se verifica em Santarém, onde 500 famílias foram expulsas numa tacada na comunidade de Santa Rosa, e engrossam hoje bolsões de miséria da periferia de Santarém.

A esfera jurídica e militar tem sido a regra no planejamento do estado para tratar na questão de disputa de terras ao longo de 10 anos de mando do Partido da Social Democracia no Pará (PSDB). Nesse sentido criou varas agrárias que em tese seriam espaços para se diluir as disputas pela terra. Já se no aparato armado criou uma divisão especial na Polícia Militar, Divisão Especial de Conflitos Agrários (DECA). Impossível tratar do assunto sem citar o Massacre de Eldorado, de 1996, onde 19 sem terra foram executados e 69 feridos.

Já no ano de 2005 numa só caneta o juiz da Vara Agrária de Marabá, Líbio Moura, expediu 50 liminares de reintegração de posse. A maior da História. A ação da tropas da PM já duram três meses. Tem sido marcada pela denúncia de truculência, onde lavouras são queimadas e barracos destruídos. Mas, no estado onde mais se mata sem terra, o governo garante que tudo vai mudar com a implantação do Projeto Pará Rural, calçado com financiamento do Bando Mundial, que visa a integração subordinada do agricultor ao mercado. Dias piores virão?

Rogério Almeida – mestrando do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA), da Universidade Federal do Pará (UFPA),

Publicado no Portal EcoDebate, www.ecodebate.com.br, em 08/11/2005