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Artigo

UHE Tucuruí: Nunca mais? por Lúcio Flávio Pinto

No próximo ano o canteiro de obras da hidrelétrica de Tucuruí será desativado. Se isso acontecer, dificilmente as obras de transposição da barragem no rio Tocantins serão concluídas. A navegação ficará interrompida por mais quanto tempo?

Gabriel Hermes Filho foi, por vários mandatos, deputado federal e senador, além de fundador e presidente da Federação das Indústrias do Pará durante 40 anos seguidos. Também foi presidente do Banco de Crédito da Amazônia, hoje Banco da Amazônia. Sempre como um político da situação, do governo.

No dia 2 de maio de 1983, com todo esse currículo, Gabriel Hermes assumiu a tribuna do Senado para advertir o governo federal, comandado então pelo general João Baptista Figueiredo, que o Pará, o Mato Grosso e o Maranhão “não permitirão que as Eclusas não sejam terminadas pari passu com a primeira etapa da barragem de Tucuruí, porque seria cometer um crime contra o Brasil”.

No discurso, o senador disse que iria repetir as palavras ditas alguns dias antes aos ministros das Minas e Energia e dos Transportes, diante de outros colegas parlamentares da Comissão de Minas e Energia: “que eu iria à frente de grupos de estudantes do meu Estado, das Universidades do Pará. Iríamos, se preciso fosse, a Tucuruí para dentro do lago seco impedir que a água enchesse o grande reservatório antes da passagem das águas”.

O lago artificial foi formado, inundando 288 mil hectares de terras com 54 bilhões de litros de água. A primeira das 12 enormes turbinas instaladas na primeira casa de força da usina entrou em operação e a hidrelétrica foi inaugurada, menos de dois anos depois do heróico discurso. Nem o senador encanecido nem seus quixotescos e jovens acompanhantes se lançaram ao reservatório para morrer pela causa. A festa de inauguração foi completa e tranqüila, graças à segurança e a desmobilização dos três Estados, que o sistema de transposição da barragem beneficiaria com a maior hidrovia do planeta.

A primeira etapa do projeto de Tucuruí foi concluída e as eclusas não chegavam nem a um terço do que deviam ser, continuando a interromper uma navegação de três séculos e meio anteriores. Dentro de mais um ano a duplicação da usina também chegará ao fim, ao custo de 3,7 bilhões de reais. É o maior canteiro de obras do país atualmente. A obra do sistema de transposição avançou mais um pouco, mas ainda se encontra bem distante da conclusão.

A Eletronorte está nos arremates da 20ª máquina, mas trabalha simultaneamente nas outras três que faltam para chegar à plena capacidade nominal de geração da hidrelétrica, de 8,2 milhões de quilowatts, a terceira maior do mundo. Quando isso acontecer, soará o dobre de finados para as eclusas de Tucuruí? Elas se perenizarão como obra inconclusa?

Mais do que uma eclusa, essa obra é uma esfinge. Talvez a comparação ajude os paraenses (e, quem sabe, os habitantes dos outros Estados alcançados pela hidrovia) a se conscientizar de que sem entendimento da questão não há domínio possível sobre ela. A eclusagem de Tucuruí é, como várias outras questões vitais do Estado, um slogan, uma palavra de ordem, um jargão – e uma esfinge. Repete-se e repete-se, à exaustão, sem que esse esforço ilumine o problema e forneça as chaves para compreendê-lo e, sempre que possível, resolvê-lo.

A obra da hidrelétrica de Tucuruí foi iniciada em 1975. A do conjunto de dois elevadores hidráulicos, comportas de aço e canais de concreto, só quatro anos depois. A empresa responsável pela usina de energia era uma, a Eletronorte (Centrais Elétricas do Norte do Brasil), provida – razoavelmente em dia com o cronograma físico-financeiro, de vulto mundial – dos recursos necessários para que, nove anos depois, a primeira fase do projeto fosse colocada em funcionamento. A Eletronorte, bem ou mal, é uma empresa de direito privado. A entidade responsável pelas eclusas era uma autarquia do Ministério dos Transportes.

A Portobrás não suportou a tarefa e foi extinta antes que o serviço estivesse ao menos com sua perenidade assegurada. A partir daí a incumbência foi sendo transferida e os recursos para realizá-la, solenemente prometidos no início de cada exercício financeiro, eram reduzidos ou simplesmente eliminados no final do orçamento. O posta-restante, hoje, oficialmente, é de pelo menos 350 milhões de reais, mas as fontes bem informadas garantem que chegará a R$ 600 milhões. Seria o valor da revisão orçamentária feita pela empreiteira responsável pela obra, a Camargo Corrêa. Não concordando com o novo orçamento, o governo federal, sovina na liberação de dinheiro para as eclusas, fechou de vez o caixa.

Ninguém pode dizer, alto e bom som, que é contra as eclusas porque significaria admitir a prática de uma ilegalidade. O Código de Águas impõe o restabelecimento da navegação de rio bloqueado por uma barragem. Por não ser prioritária, a obra foi sendo postergada. Mudar esse entendimento firmado em Brasília exige mais do que discurso de tribuna parlamentar: é preciso demonstrar a necessidade da transposição do rio Tocantins em Tucuruí.

O problema é que nem os defensores da obra chegaram a examiná-la em detalhe, aceitando considerar inclusive seus elementos polêmicos ou mesmo nocivos. Como, por exemplo, o projeto original de engenharia, superdimensionado, ou o absurdo de prorrogar um contrato através de aditamentos de valor muito superior ao do orçamento inicial.

A Companhia Siderúrgica do Pará já fez sete embarques no porto de Vila do Conde de milhares de toneladas de ferro gusa, transportada em milhares de viagens de caminhão desde Marabá, a quase 500 quilômetros de distância, para provar que a transposição da barragem de Tucuruí já é uma obra viável economicamente. Sem esse empecilho, a carga a transportar podia ser muito mais volumosa e o frete baixaria, tornando o produto competitivo até mesmo quando os preços caírem, como será a tendência provável.

Se as eclusas não saírem, a Cosipar terá que montar um esquema de escoamento intermediário entre o atual, que é caro (e só se mantém por causa do preço da gusa, excepcionalmente elevado), e o possível, através de transbordo da carga rodoviária na barragem, quando pegará o modal hidroviário.
Toda carga de minério ferro e gusa a transportar pela hidrovia soma menos de 8 milhões de toneladas. A capacidade do sistema de transposição da barragem de Tucuruí é 10 vezes maior.

Como, quando completo, esse sistema custará mais de um bilhão de reais, Brasília reluta em aceitar comprometer recursos. Naturalmente, porque encara as eclusas como um fato isolado, não como um elemento de um plano global de desenvolvimento.

Se já fosse possível ultrapassar a barreira de Tucuruí, a navegação se tornaria plena da foz do Tocantins até Marabá, numa extensão de 500 quilômetros. Com a eclusa da hidrelétrica de Lajeado, ainda a construir, mas com orçamento muito menor, a navegabilidade se estenderia por mais 400 quilômetros, abrangendo quase 40% da extensão do Tocantins, o 25º maior rio do mundo. Não é pouca coisa, mas deve-se reconhecer que o dinheiro envolvido não é desprezível, muito pelo contrário.
Enfrentar a esfinge, decifrando-lhe os mistérios, constitui desafio urgente. No papel, a data prevista para a conclusão das eclusas continua a ser 21 de junho de 2006. Mas essa data se tornou mera fantasia com a interrupção do fluxo de caixa. Se o canteiro de obras da hidrelétrica de Tucuruí for definitivamente desmobilizado, dentro de mais alguns meses, o que já se fez no sistema de transposição poderá se transformar em algo como uma pirâmide. Ou seja: um túmulo suntuoso.

Por Lúcio Flávio Pinto em Jornal Pessoal , 28/09/2005