Biodiesel é solução.Mas para quantos? Artigo de Washington Novaes
[O Estado de S. Paulo] Aos poucos, parece estarse formando um quase-consenso em torno da tese de que o Brasil poderá ser um dos líderes de uma revolução no campo da energia, baseada na produção de derivados de biomassas que possam substituir combustíveis fósseis. O governo federal, entretanto, deve uma discussão mais ampla do tema com os vários setores interessados e com o País todo, para que não se cometam erros desnecessários nem se percam oportunidades raras e valiosas.
Pode-se começar com o que tem dito um dos pensadores mais lúcidos sobre a problemática brasileira, o professor Ignacy Sachs, do Centro de Estudos sobre o Brasil Contemporâneo, na França. Ele lembra que não voltaremos ao regime de ‘petróleo barato’ e que em uma ou duas décadas atingiremos o pico dessa produção. Esses dois fatores, associados à necessidade de reduzir a emissão de gases que intensificam mudanças climáticas, exigem novas alternativas. E os Departamentos de Energia e de Agricultura dos Estados Unidos já calcularam que em 25 anos se pode chegar a 1 bilhão de toneladas de biomassas por ano, como matéria-prima para biocombustíveis.
Nesse contexto, pensa Sachs, são extraordinárias as possibilidades de, com as biomassas, contribuir também para reduzir o grave problema de trabalho e renda de 2,5 bilhões de pessoas que vivem da agricultura no mundo.
No Brasil, ajudaria a repensar o desenvolvimento rural – partindo da premissa de que detemos a maior biodiversidade planetária, as maiores reservas de terras férteis (sem necessitar de desmatamentos novos na Amazônia), boa disponibilidade de recursos hídricos. ‘Tudo isso’, afirma ele, ‘faz do Brasil um país predestinado a liderar a transição mundial da civilização do petróleo para a civilização moderna da biomassa.’ Sachs exemplifica com o dendê, que foi a base da reforma agrária na Malásia.
Se forem incluídas num programa 500 famílias, cada uma delas recebendo 10 hectares para a produção de dendê, mais 10 para produção agroflorestal, vai-se conseguir gerar, na primeira área, trabalho para uma pessoa e para mais duas nas outras atividades – sem falar em que uma agrovila com 500 famílias (5 mil hectares de dendê) justifica a implantação de uma usina de esmagamento, com novos postos de trabalho, aos quais se acrescentarão outros nas áreas de transporte, alimentação, serviços técnicos, serviços sociais. É preciso, entretanto, contar com assistência técnica da Embrapa e com uma estratégia decidida de fazer da biomassa o suporte também da geração de trabalho e renda, além da produção de alternativa energética.
Mas o programa do biodiesel corre riscos de não cumprir esse papel estratégico de aliar a produção de uma alternativa energética à finalidade social. Pode até repetir erros e agravar alguns problemas. É o que diz, por exemplo, estudo da Fundação LaGuardia (ítaloamericana) e do economista/ ecologista Luiz Prado, que foi secretário do Meio Ambiente do Espírito Santo e presidente da Fundação Estadual do Meio Ambiente do Rio de Janeiro. Dizem eles que é alto o risco de o programa gerar concentração da renda e da propriedade rural, contribuir para o êxodo de populações para as periferias urbanas e repetir erros que deveriam ter sido evitados já no Proálcool (além desses, a expulsão das culturas de alimentos para longe dos maiores centros consumidores, contribuindo para o encarecimento de preços).
Justificam esse raciocínio casos concretos observados em cultivos de mamona no Piauí, de dendê no Pará, e outros, nos quais a produção está dissociada da presença de esmagadoras locais – o que leva ao compromisso de entrega a grandes esmagadoras, situadas a grandes distâncias. Além de transferir para estas os ganhos com agregação de valor, isso gera também altos custos de transporte para os fornecedores. Num caso examinado, num assentamento de reforma agrária no Piauí, o produtor só recebe o título definitivo de propriedade do lote se produzir mamona durante dez anos, com contrato de venda antecipada. No caso do Pará, os contratos já prevêem o desconto, no pagamento, de despesas com financiamento bancário. ‘E não há estímulo à formação de cooperativas, ao associativismo’, diz o estudo.
Lembra esse trabalho que o Brasil, que já foi o maior produtor mundial de mamona, hoje cultiva cerca de 180 mil hectares de 1 milhão que existem no mundo (a Índia é a maior produtora, em 600 mil hectares). Perdeu sua posição exatamente porque faltaram políticas públicas para o setor. A Embrapa já desenvolveu variedades de sementes de alta produtividade no semiárido – até 1.500 quilos por hectare, sem adubação, com teor de óleo de 48,9% e altura média de 1,90 metro (que facilita a colheita). Mas em alguns testes, por falta de assistência técnica, a produtividade caiu para 450 quilos por hectare.
O estudo recomenda que, para beneficiar pequenos produtores, num estágio inicial, se concentrem esforços na produção de óleo e na busca de um parceiro tecnológico com interesse na produção e exportação de biodiesel – além de usar o produto para consumo na própria região, em veículos automotores e motores estacionários nas áreas mais remotas (onde o diesel custa mais caro). Além disso, associados, os pequenos produtores poderão candidatarse a financiamentos no âmbito do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo, da Convenção de Mudanças Climáticas.
São ponderações que precisam ser ouvidas. O Brasil está diante de uma possibilidade excepcional. Não pode perdêla, nem deixar de utilizá-la para resolver nossos graves problemas de concentração da renda e geração de postos de trabalho.?
Publicado originalmente em O Estado de São Paulo, 23/09/2005