Livro: A educação para além do capital. Contra a ordem social alienante, crítica por Roberto Leher
Obra de Mészáros repele a submissão da educação ao reino da mercadoria
Roberto Leher – Professor da UFRJ
A educação para além do capital
István Mészáros
Boitempo
80 páginas
R$ 20
István Mészáros, o principal discípulo do ”Galileu do Século 20”, Georg Lukács, escreve em A educação para além do capital uma primorosa obra-síntese que é um guia de ação para subsidiar a luta contra a completa submissão da educação ao reino da mercadoria, um processo que se difunde com a rapidez vertiginosa de montanha russa, cujo resultado é a negação da auto-realização humana e a perpetuação da ordem social alienante.
A relevância do tema é evidente. No Brasil, 88% das instituições de ensino superior são privadas e, confirmando o acelerado processo de ”comodificação” da educação, em 2004 o governo aprovou lei de parceira público-privada (Programa Universidade para Todos) que estabelece a isenção de impostos e contribuições para mais 1302 instituições privadas, além das 350 instituições ”filantrópicas”, comunitárias e confessionais que já haviam conquistado esse subsídio público na Constituição. Passos importantes estão sendo dados para abrir o comércio transfronteiriço de educação (em especial por meio de cursos a distância) ofertado pelos cyber-rentistas.
Para horror dos novos e velhos partidários da ”Terceira Via” e dos pós-modernos adeptos da ordem, Mészáros afirma, sem meias-palavras, que a educação emancipatória exige a destruição da ordem do capital. A sua tese é precisa: ”é necessário romper com a lógica do capital se quisermos contemplar a criação de uma alternativa educacional significativamente diferente”. A alternativa liberal é o ”gradualismo utópico” que foi incapaz de reverter a situação de barbárie educacional a que a imensa maioria dos povos está submetida. Mészáros analisa as proposições iluministas de Adam Smith, o maior representante da economia política, e de Robert Owen, um dos mais importantes ideólogos do socialismo utópico, para demonstrar a miséria de suas propostas educacionais.
Não se trata de equívoco dos autores citados, mas do limite de pensar a educação democrática como prática congruente com o processo do capital. Mészáros mostra os intransponíveis limites do pensamento liberal, analisando as concepções de Locke. Hoje, em virtude das conquistas sociais dos trabalhadores, não é possível submeter os pobres cortando suas orelhas, ou encarcerando suas crianças nos centros de formação, como defendeu Locke. Contudo, a mesma preocupação com a ordem é abraçada pelo Banco Mundial: a educação deve ser instrumento (ideológico) para alívio à pobreza e para impedir que as classes perigosas se insurjam contra a ordem estabelecida.
Mészáros sustenta a ousadia de um pensamento político e pedagógico revolucionário: ”Hoje o sentido da mudança educacional radical não pode ser senão o rasgar da camisa-de-força da lógica incorrigível do sistema: perseguir de modo planejado e consistente uma estratégia de rompimento do controle exercido pelo capital, com todos os meios disponíveis, bem como com todos os meios ainda a ser inventados, e que tenham o mesmo espírito”.
Na melhor tradição marxista, a obra é um diálogo com os protagonistas sociais – professores, estudantes e militantes – reunidos no Fórum Mundial de Educação e, nesse sentido, a exemplo dos escritos de Marx para a Associação Internacional dos Trabalhadores, essa profunda reflexão filosófica é dirigida à definição de linhas estratégicas para as lutas do presente. O desafio não é uma educação para ilustrar ou para conformar os trabalhadores para as máquinas, mas para ”transformar a realidade”.
Ao expor o seu pensamento aos milhares de educadores envolvidos nas lutas contra a mercantilização da educação, Mészáros está ciente de que, na América Latina, estes sujeitos estão entre os principais protagonistas das lutas antineoliberais. Embora, à primeira vista, a agenda desses movimentos pareça estar limitada às condições materiais da educação pública, situação inevitável em um contexto de desconstituição dos sistemas públicos, é inegável que valores e princípios libertários e emancipatórios pulsam nessas lutas. São ecos da Comuna de Paris: o direito de todos os que têm um rosto humano a uma educação crítica, laica, rigorosa em termos científicos, culturais e artísticos ou, conforme a bela expressão de Marx, a uma educação omnilateral, capaz de assegurar uma educação integral, simultaneamente tecnológica, histórico-social, humanística, filosófica e artística. Uma das passagens mais instigantes é a do que seriam os germes da educação do futuro. O conhecimento filosófico sofisticado de Mészáros faz diferença. Lembrando Gramsci, afirma: o Homo faber não pode ser separado do sapiens. É o fundamento da educação socialista.
Com Lênin, assevera que o momento é propício à ousadia de lutar para mudar de forma duradoura a situação vigente, visto que ”os dominantes não podem governar à maneira antiga, e as classes subalternas já não querem viver à maneira antiga”. E os embates serão mais duros no âmbito da educação institucionalizada pelo Estado, notadamente em decorrência do ethos privatista que orientou as reformas do Estado e de seu papel esperado no controle social. Os espaços educativos extra-escolares podem ser fontes de inspiração utópicas para essas lutas, como atesta o interesse crescente dos movimentos sociais pela educação e pela formação de seus militantes. Assim, ao se dirigir a educadores, Mészáros os está desafiando a ampliar o horizonte de análise e a perspectiva estratégica, objetivando a ”criação de uma alternativa abrangente concretamente sustentável ao que já existe”.
Essa tarefa requer a superação da alienação do trabalho e a negação da ordem do capital. A educação é um lócus fundamental dessa luta, pois é nele que grande parte das disposições ideológicas (internalização) da ordem do capital se reproduz. A ação pedagógica transformadora é uma dimensão crucial da práxis revolucionária. Para concretizar a ”sociedade de produtores livremente associados”, a educação deve fomentar a ”automudança consciente dos indivíduos”. Duas condições são indispensáveis: ”universalização da educação e do trabalho como atividade humana auto-realizadora”.
De forma muitas vezes comovente, o livro é uma obra para forjar as brechas da sociedade (e da educação) do futuro e desenvolve estudos anteriores, como sua tese de doutorado ”Marx: a teoria da alienação” e Para além do capital. O desafio proposto é apaixonante e humanamente necessário.
*Roberto Leher , professor da UERJ, é coordenador do Grupo de Trabalho Universidade e Sociedade do CLACSO.
Publicado originalmente no Jornal do Brasil, Caderno Idéias, 03/09/2005