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Impactos das mudanças climáticas na produção e disponibilidade global de alimentos

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Dimensões da vulnerabilidade da agricultura e da pesca marinha às mudanças climáticas

 

Artigo de Reinaldo Dias

Doutor em Ciências Sociais -Unicamp

Pesquisador associado do CPDI do IBRACHINA/IBRAWORK

Parque Tecnológico da Unicamp – Campinas – Brasil

http://lattes.cnpq.br/5937396816014363

reinaldias@gmail.com

As chuvas e enchentes que atingiram o Rio Grande do Sul neste último mês de maio produziram a maior catástrofe climática brasileira. O grande volume de chuvas provocou rapidamente inundações, alagamentos e um rastro de destruição ainda por se mensurar em sua totalidade e prolongamento. A singularidade deste evento resultou em mais de 170 vidas perdidas, a quase totalidade dos municípios foram afetados e aproximadamente meio milhão de atingidos e deslocados climáticos em todo o estado.

As inundações no Rio Grande Sul causaram uma catástrofe nas principais colheitas de estado, em particular o arroz e a soja, que impactam o preço dos alimentos. Em outro extremo climático, especialistas creditam a atual explosão do fogo à seca severa no bioma Pantanal, que se arrasta há anos e ficou mais grave neste ano. Área queimada no Pantanal em 2024 já é 54% maior que em ano de destruição recorde. Agora, números contabilizando os primeiros dias de junho mostram que a devastação continua aumentando. Pantanal tem junho com mais focos de incêndio da história. As mudanças climáticas, responsáveis pelo excesso de chuva no Sul e a antecipação da seca no Centro-Oeste, estão fazendo com que os alimentos pressionem a inflação por mais tempo este ano.

Em termo globais, recente relatório do IPCC mira uma quebra generalizada de colheitas, o que resultaria em escassez de alimentos no mundo, com maiores prejuízos para os mais pobres, mas chegando progressivamente às cadeias de abastecimento, mercados e finanças nacionais. Com emissões globais subindo nas proporções atuais, a expectativa é de quebra na produção nacional de arroz, trigo e milho, principalmente.

A maioria dos cientistas em todo mundo, reconhecem que a crise climática global é um dos maiores desafios do século 21, afetando ecossistemas, economias e sociedades, além de exacerbar a crise hídrica. Projeções indicam que, até 2050, bilhões de pessoas enfrentarão estresse hídrico severo, com a demanda por água aumentando em 20-25% desde 1960. A agricultura, uma grande consumidora de água, é particularmente afetada pelo crescimento populacional e políticas insustentáveis de uso da água. Mudanças climáticas intensificam esse problema, provocando secas e ondas de calor mais frequentes, que impactam a segurança alimentar. É vital a adoção de estratégias como conservação de áreas naturais, técnicas de irrigação eficientes e promoção de energias sustentáveis (KUZMA et al, 2023).

As mudanças climáticas têm implicações diretas na segurança alimentar, essencial para a sobrevivência e bem-estar humano.

A segurança alimentar, definida pela FAO como a disponibilidade e acessibilidade de alimentos que atendam às necessidades alimentares, está ameaçada pelas mudanças climáticas, exacerbando vulnerabilidades existentes. Segundo o relatório da FAO “O Estado da Segurança Alimentar e Nutricional no Mundo 2023” (FAO, 2023), a fome global permaneceu relativamente estável entre 2021 e 2022, afetando cerca de 9,2% da população mundial em 2022, em comparação com 7,9% em 2019. Em 2022, aproximadamente 735 milhões de pessoas enfrentaram a fome. Esses dados ressaltam a urgência de compreender as conexões entre mudanças climáticas e recursos alimentares, permitindo que formuladores de políticas e comunidades se preparem e se adaptem melhor aos desafios iminentes.

Desafios climáticos para a agricultura

A agricultura, essencial para a subsistência humana, é altamente sensível às mudanças climáticas. A variabilidade na precipitação, como secas e inundações, representa uma ameaça significativa à produtividade agrícola. Com a demanda por água prevista para exceder a oferta em 40% até 2030, e a agricultura consumindo 70% dos recursos hídricos, a irrigação será gravemente afetada. As secas reduzem a umidade do solo necessária para o crescimento das plantas, enquanto as inundações podem destruir colheitas inteiras. Estima-se que, até 2040, 1,8 bilhão de pessoas viverão em regiões com escassez absoluta de água devido a padrões de precipitação imprevisíveis (SCHEWE et al., 2014).

O aumento das temperaturas globais também tem múltiplas consequências. Estudos da Universidade de East Anglia mostram que países como Brasil, Índia, China, Etiópia, Gana e Egito enfrentarão secas severas com um aumento de apenas 1,5°C, afetando drasticamente os rendimentos agrícolas (PRICE et al, 2022). O aumento das temperaturas facilita a disseminação de pragas, ampliando a variedade de hospedeiros e a dispersão geográfica dessas ameaças. Ações humanas e a globalização dos mercados exacerbam esse problema, necessitando de colaboração global para estratégias fitossanitárias eficazes.

A alteração dos padrões de temperatura pode modificar as estações de crescimento, levando a épocas de plantio incompatíveis e afetando as colheitas. Muitas plantações são vulneráveis a temperaturas superiores a 32° a 35°C, e um aumento de um grau pode resultar em uma redução de 3 a 7% na produção de culturas significativas, como milho e soja. O ciclo de vida das plantas acelera com temperaturas elevadas, resultando em menos tempo para a fotossíntese e produção reduzida de grãos (CHO, 2022).

As mudanças climáticas também alteram a geografia das culturas. O cultivo de café arábica no Brasil, o mais produzido no país, será fortemente impactado pelas mudanças climáticas nas próximas décadas. Até 2080, o Brasil pode perder mais de 50% das áreas adequadas para o cultivo. Os estados de Minas Gerais, São Paulo e Paraná serão os mais afetados. A elevação das temperaturas, especialmente acima de 34°C entre setembro e outubro, período crítico para a floração, destaca a necessidade de estratégias de adaptação para proteger a produção de café (Lorençone et al, 2023). Neste cenário, no Brasil, a produção agrícola pode se deslocar, com culturas como o café arábica migrando para regiões mais ao sul devido ao aumento da temperatura.

A vinicultura europeia enfrenta riscos devido a eventos climáticos extremos e temperaturas elevadas, mas regiões antes consideradas muito frias, como Reino Unido e Bélgica, agora veem uma expansão na produção de vinhos (BILBY, 2023). Na América do Sul, as mudanças climáticas têm afetado a produção de vinhos e azeites em Mendoza, Argentina. Vinícolas e olivícolas estão antecipando colheitas e plantando em altitudes maiores para encontrar climas mais frescos. A região, situada no deserto aos pés dos Andes, enfrenta estresse hídrico há 12 anos devido à redução da neve, essencial para o degelo que abastece rios e reservatórios. Para se adaptar, produtores diversificam uvas e ampliam sistemas de irrigação por gotejamento, além de impermeabilizar canais para evitar a perda de água. Esses esforços visam preservar a qualidade das bebidas frente aos eventos climáticos extremos (Barbon, 2023).

Por sua parte, a elevação do nível do mar impacta predominantemente zonas agrícolas costeiras, levando à salinização de terras agrícolas. Em Bangladesh, a salinização do solo devido ao aumento do nível do mar resultou em um declínio de 15% na produtividade de arroz (DASGUPTA et al, 2008). Compreender esses efeitos é crucial para antecipar desafios futuros e formular estratégias de adaptação que garantam a segurança alimentar em um futuro climático incerto.

Os impactos do aquecimento global na disponibilidade de alimentos

O aquecimento global impacta profundamente o sistema alimentar, abrangendo produção, distribuição e consumo, e afetando a disponibilidade de alimentos. Alimentos básicos como arroz, trigo e milho, essenciais para bilhões, são altamente vulneráveis às variações climáticas, afetando a segurança alimentar global. O arroz, por exemplo, sofre com o estresse térmico, e um aumento de 1°C na temperatura noturna pode reduzir a produtividade em 10% (PENG et al., 2004). O trigo, uma cultura de estação fria, pode ter sua produção diminuída em 6% para cada aumento de 1°C na temperatura global (ASSENG et al., 2015). A fase reprodutiva do milho é particularmente sensível ao estresse térmico, já resultando em reduções substanciais na produtividade em regiões da África e América Latina (BATTISTI & NAYLOR, 2009).

Frutas também são afetadas pelas mudanças climáticas. A produção de mamão no Brasil enfrenta desafios significativos devido ao aumento das temperaturas e à necessidade crescente de irrigação contínua (COELHO et al, 2022). Além da produtividade, o aquecimento global afeta a qualidade nutricional das culturas. Níveis elevados de CO2 têm sido associados à redução do teor de proteína nos grãos de trigo, com uma diminuição de 6-8% (TAUB, MILLER, & ALLEN, 2008). A concentração de minerais essenciais como zinco e ferro também diminui com o aumento do CO2, agravando os desafios nutricionais, especialmente em regiões dependentes dessas culturas para a ingestão de micronutrientes (MYERS et al., 2014).

As mudanças climáticas ameaçam significativamente o fornecimento global de calorias, podendo afetar até 25% das safras até o final do século. Alterações nos padrões climáticos, como aumento do calor e diminuição das chuvas, poderiam reduzir o rendimento das culturas em até 10% até meados do século. Culturas essenciais como milho, arroz, soja e trigo, que compõem 75% da ingestão global de calorias, são particularmente vulneráveis. A longo prazo, agricultores podem adotar medidas adaptativas, como a introdução de novas variedades de culturas, ajustes nas datas de plantio e colheita, e a incorporação de novas tecnologias, mitigando, em parte, os impactos das mudanças climáticas na produtividade agrícola (WING, 2021).

Com o aquecimento global se intensificando, as mudanças no perfil nutricional e na produtividade das principais culturas ressaltam a necessidade urgente de estratégias adaptativas. Garantir a disponibilidade de alimentos nesse cenário em evolução exige uma abordagem multifacetada que aborde tanto os desafios agrícolas quanto os sistêmicos.

Insegurança alimentar: consequências socioeconômicas e de saúde

As perturbações nos sistemas alimentares, exacerbadas pelas mudanças climáticas, vão além da fome e da desnutrição, impactando várias dimensões socioeconômicas e de saúde. A insegurança alimentar pode provocar migrações em grande escala, com milhões de pessoas deslocadas em busca de segurança alimentar. Além disso, a escassez de alimentos pode levar a conflitos, como observado no Chifre da África e na região do Sahel (HENDRIX & SALEHYAN, 2012). Comunidades marginalizadas, como pequenos agricultores, indígenas e mulheres, enfrentam riscos agravados devido a recursos limitados e capacidades adaptativas reduzidas (NELSON et al., 2009).

A diminuição da disponibilidade e qualidade nutricional dos alimentos tem impactos diretos na saúde pública. A desnutrição, incluindo deficiências de micronutrientes, aumenta com a perda de valor nutricional das culturas, afetando o desenvolvimento cognitivo, a saúde física e a imunidade (SMITH & HADDAD, 2015). Em resposta à escassez, comunidades podem recorrer a fontes alternativas de alimentos, expondo-se a novos riscos de saúde, incluindo doenças zoonóticas (GRACE et al., 2012). Em resumo, as consequências da insegurança alimentar destacam a necessidade de estratégias proativas e interdisciplinares.

Conclusão

As mudanças climáticas estão provocando efeitos significativos e complexos na produção e disponibilidade de alimentos ao redor do mundo. Eventos extremos, como as enchentes devastadoras no Rio Grande do Sul e os incêndios intensos no Pantanal, exemplificam os impactos diretos dessas mudanças no ambiente agrícola. Além disso, a variabilidade climática está desafiando a produtividade agrícola, com secas severas e inundações frequentes prejudicando colheitas essenciais como arroz, trigo e milho.

Os efeitos das alterações climáticas na agricultura são amplos e profundos, afetando não apenas a quantidade, mas também a qualidade nutricional dos alimentos. O aumento das temperaturas, a propagação de pragas e a salinização de terras agrícolas estão entre os muitos desafios que comprometem a segurança alimentar global. Essas mudanças exigem adaptações significativas, desde o desenvolvimento de novas técnicas agrícolas até a implementação de políticas que promovam a resiliência e a sustentabilidade.

Os impactos mais amplos da insegurança alimentar, exacerbados pelas mudanças climáticas, incluem migrações em massa, conflitos e graves consequências para a saúde pública. Comunidades vulneráveis, especialmente pequenos agricultores, mulheres e populações indígenas, estão entre as mais afetadas, necessitando de atenção e apoio especiais para se adaptarem e sobreviverem a esses desafios.

Portanto, é imperativo que ações coordenadas e estratégicas sejam implementadas para mitigar os impactos das mudanças climáticas na segurança alimentar. Investimentos em pesquisa, desenvolvimento de tecnologias adaptativas e políticas públicas eficazes são essenciais para garantir que as futuras gerações possam contar com um sistema alimentar sustentável e resiliente. A cooperação global e o compromisso com a ação climática são fundamentais para enfrentar essa crise e proteger a segurança alimentar mundial.

Referências:

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