Brasil: hora de repensar a mineração, artigo de Maria Orlanda Pinassi
“Flagelos da mineração ocorrem em todo o país a todo instante e envolvem um espectro muito maior de processos predatórios. Estima-se que cerca de dois mil municípios brasileiros desenvolvam atividades dessa natureza pelas quais recebem o CFEM – Compensação Financeira pelos Recursos Minerais. Conforme o MAM – Movimento dos Atingidos pela Mineração, estima-se ainda que o Brasil possui oito mil minas de exploração mineral e que para cada uma delas exista uma barragem de rejeitos mais ou menos letais. Em Parauapebas, município do sudeste paraense que sedia a maior reserva de ferro a céu aberto do mundo (o Projeto Carajás [3]), apenas uma dessas instalações, se rompida, tem potencial para despejar muita, mas muita lama tóxica no rio Parauapebas que é afluente do rioItacaiúnas que é afluente do rio Tocantins que é afluente do rio Pará que, por sua vez, deságua no Oceano Atlântico”, escreve Maria Orlanda Pinassi [1], socióloga, em artigo publicado por Outras Palavras, 06-12-2015.
Eis o artigo.
Hoje não há sentido em falar em desenvolvimento geral da produção associado à expansão das necessidades humanas. Assim, dada a forma em que se realizou a deformada tendência globalizante do capital – e que continua a se impor –, seria suicídio encarar a realidade destrutiva do capital como pressuposto do novo e absolutamente necessário modo de reproduzir as condições sustentáveis da existência humana. István Mészáros. Século XXI – socialismo ou barbárie.
Os casos de Nova Lima (2001), Cataguases (2003) e Miraí (2007), na Zona da Mata, e de Itabirito (2014), todos ocorridos em Minas Gerais, deram a Mariana (2015) o protagonismo de uma tragédia anunciada. Mas, até então, o que conhecíamos nós sobre barragens de contenção de rejeitos (altamente tóxicos) da atividade minerária? Por que nos interessaria saber que várias dessas barragens seguem funcionando normalmente apesar dos sérios riscos de desestabilização estrutural que oferecem? E que MG, reproduzindo e ampliando uma realidade que é nacional, possui apenas quatro fiscais para monitorar suas 735 barragens destinadas a tais fins?
Tragédias com essa magnitude costumam revelar segredos empresariais criminosamente omitidos das populações direta e indiretamente atingidas por suas atividades. E o Estado, articulado com o capital em todas suas esferas de ação (federal, estadual, municipal), é o cúmplice ativo destes crimes de lesa humanidade porque seus órgãos de fiscalização sofrem de uma deficiência crônica e proposital e porque não são poucas as artimanhas que cria para penalizar intervenções pequenas ao mesmo tempo em que facilita e agiliza a emissão de “licenciosidades” ambientais para projetos de vulto.
O rompimento do dia 5 de novembro último liberou 65 milhões de metros cúbicos de rejeitos [2] que seguiram pelos 880 km dos cursos dos rios Gualaxo do Norte, do Carmo e Doce, atingindo os estados do Rio de Janeiro, Espírito Santo, Bahia, envenenando praias, mar, manguezais, santuários ecológicos. Os testas-de-ferro da Samarco, subsidiária do consórcio formado pela australiana BHP-Billiton e pela Vale Internacional, empresa responsável pelos eventos relatados, negam-se a assumir a responsabilidade pelo episódio e pela presença de metais pesados no material liberado. Mas análises preliminares constataram que o nível de toxicidade da lama, contaminada por manganês, alumínio, zinco, arsênio – por toda a tabela periódica – estaria um milhão e trezentos mil por cento acima do limite tolerável. As imagens devastadoras a que assistimos desde a tragédia e as incertezas que pairam sobre o futuro das áreas e pessoas expostas à lama corrosiva não precisam de legendas, nem explicações.
O arremate da tragédia de Mariana se deu com o cinismo em fornecer água com querosene para as famílias afetadas em Governador Valadares. O desdém é mantido com a represália das duas maiores mineradoras do mundo às sanções impostas pela justiça que envolvem o bloqueio de bens e a paralisação das atividades naquela mina de ferro. Alegam, por isso, não terem recursos para prestar qualquer assistência à população afetada, para recuperar os danos socioambientais causados e nem mesmo para pagar os salários dos seus próprios funcionários, ameaçados de demissão a partir de 31 de janeiro de 2016.
Flagelos da mineração ocorrem em todo o país a todo instante e envolvem um espectro muito maior de processos predatórios. Estima-se que cerca de dois mil municípios brasileiros desenvolvam atividades dessa natureza pelas quais recebem o CFEM – Compensação Financeira pelos Recursos Minerais. Conforme o MAM – Movimento dos Atingidos pela Mineração, estima-se ainda que o Brasil possui oito mil minas de exploração mineral e que para cada uma delas exista uma barragem de rejeitos mais ou menos letais. Em Parauapebas, município do sudeste paraense que sedia a maior reserva de ferro a céu aberto do mundo (o Projeto Carajás [3]), apenas uma dessas instalações, se rompida, tem potencial para despejar muita, mas muita lama tóxica no rio Parauapebas que é afluente do rio Itacaiúnas que é afluente do rio Tocantins que é afluente do rio Pará que, por sua vez, deságua no Oceano Atlântico.
Imensuráveis impactos sociais e ambientais são e deverão ser sentidos com ainda maior intensidade. Por exemplo, em toda cadeia produtiva do ferro, cobre e ouro, minérios cada vez mais vitais à lógica da produção destrutiva [4], do consumismo industrial e individual irresponsável, da obsolescência programada e do desperdício generalizado. Pois, para atender aos interesses deste tipo de desenvolvimento do capital, crateras gigantescas são abertas, florestas nativas desmatadas, rios assoreados e o monocultivo de eucalipto põe o agronegócio no circuito para fornecer carvão para os fornos das siderúrgicas. Um sem-número de hidrelétricas, hidrovias, ferrovias e transposição de rios geram a energia demandada e as vias de escoamento da produção. Atrás de tudo, fica um rastro de destruição da fauna, da flora e da vida de comunidades inteiras de indígenas, quilombolas e camponeses. Cidades experimentam forte explosão demográfica sendo inexoravelmente afetadas por miséria, fome, prostituição infanto-juvenil e pela péssima qualidade da água proveniente de rios poluídos.
Tão grave quanto é constatar que nos territórios controlados pela atividade minerária é recorrente a incidência de trabalho escravo, de trabalho infantil e de doenças laborais irreversíveis entre trabalhadores da própria empresa e, principalmente, entre terceirizados, quarteirizados etc. Nestes locais cresce a violência militar e paramilitar sobre as populações vulneráveis que ousam insurgir-se contra as degradações impostas a elas pelo capital e pelo Estado. Para se ter ideia, na mesma região sul e sudeste do Pará, que testemunhou algumas das mais bárbaras chacinas políticas do país, como a repressão à Guerrilha do Araguaia e o massacre de Eldorado de Carajás [5], e que mantém uma sinistra tradição de extermínio de lutadores populares, a CPT denuncia que, somente no ano de 2015, surgiram 125 focos de conflitos de terra com grande possibilidade desse número se ampliar para 181. Onze trabalhadores foram assassinados e 29 outros figuram nas listas dos ameaçados de morte. Os fatos exigem que o Estado ative e execute o programa de proteção às pessoas que “vivem” nestas condições.
A Vale, que ironicamente um dia foi do Rio Doce, carro chefe do desenvolvimento e da (in)segurança nacional desde Getúlio, deu saltos decisivos durante a ditadura, foi privatizada por FHC a troco de tostões, transnacionalizada e estratosfericamente valorizada no mercado de ações. Dos governos do PT recebeu enormes incentivos fiscais e uma linha de crédito direta do BNDES – a Valepar – para incrementar seus negócios, um dos quais é potenciar a vocação brasileira de fornecer matéria prima para o primeiro mundo, lógica em que exporta ferro para a produção de armamento do complexo industrial militar dos EUA, China e Israel. O Movimento Articulação Internacional dos Atingidos e Atingidas pela Vale vem denunciando, desde 2010, o modo imperativo com que esta empresa explora os recursos naturais e humanos no Brasil e outros 30 países nos quais atua. Por onde passa, conduz com êxito a estratégia de subjugar e controlar governos nacionais, independentemente dos indivíduos e dos partidos que os ocupem.
Neste quadro, as multas que aqui e acolá a Vale é obrigada a pagar são gorjetas perto de seus lucros astronômicos. As ameaças de penalização mais severa sobre o setor fingem uma soberania inexistente do público frente ao privado, de uma autonomia ilusória da política em relação aos interesses econômicos. E, ainda, os aconselhamentos para que se imponha uma maior regulamentação sobre a atividade minerária caem na reserva moral dos crédulos ou desatentos à forte movimentação no sentido da aprovação do Código da Mineração que constituirá certamente enorme impulsionador à produção do setor. A aplicação dos itens constantes da Agenda Brasil e da Lei Antiterrorismo, adequações de nossa política interna às exigências do TISA [6], do qual não somos signatários mas dependentes, irá garantir que o capital da Vale e de tantas outras transnacionais se agigante, sem qualquer limite humano, social, ambiental ou nacional no horizonte.
É assim que, para além de todas as evidências ameaçadoras da mineração, importantes intelectuais das esquerdas e líderes de expressivas organizações populares continuam a defender a ideia de que se trata de uma atividade vital para o desenvolvimento e a soberania do país.
Ora, que padrão de desenvolvimento é esse que, apesar de pôr em risco a existência da humanidade, resiste no romantismo desenvolvimentista nacional-provinciano?
Ir à raiz deste necessário questionamento é ir na direção de uma ruptura absoluta com o sistema de produção destrutiva que preside a atividade minerária com características tão flagrantemente perigosas à vida. Por isso mesmo não se pode crer que a solução para os negócios nefastos da Vale seja sua reestatização, nem a renacionalização dos seus buracos, da sua lama e seus estragos. Em benefício do nosso futuro, o desafio da luta efetivamente popular deve ser pela sua absoluta erradicação e, principalmente, pela erradicação do padrão societário que a torna tão necessária.
Notas
[1] Esse texto foi escrito com a colaboração de Raimundo Gomes da Cruz Neto, educador popular do CEPASP – Centro de Educação, Pesquisa e Assessoria Sindical e Popular, Marabá, PA e Célia Congilio, professora de Ciência Política da UNIFESSPA, Marabá, PA.
[2] (Nota da edição de Outras Palavras) Para efeito de comparação, vale lembrar que o volume de lama tóxica liberada equivale a 1/3 da água hoje disponível (192 milhões de metros cúbicos em 1º/12/15) no reservatório da Cantareira, que abastece todos os dias 5 milhões de pessoas em São Paulo.
[3] “Na implementação do projeto Carajás, a meta de exploração imposta pelos militares foi de 10 milhões de toneladas métricas de minério-ano. Essa produção passou nos anos 1990, principalmente após a privatização [da Vale] para 109 milhões de toneladas anuais. Com a efetivação do projeto S11D esse montante passará a 230 milhões de toneladas anualmente”. Elementos constitutivos do MAM. Iguana Editorial, 2015 (p.17).
[4] A produção de ferro cresceu 37% nos últimos três anos em Mariana, MG.
[5] Em abril de 2016, o Massacre de Eldorado dos Carajás completa 20 anos sem que aqueles dezenove assassinatos e outras tantas sequelas físicas e psicológicas que marcaram definitivamente os sobreviventes tenham encontrado a justiça exigida.
[6] Ver a respeito https://wikileaks.org/tisa/ e http://www.cartacapital.com.br/blogs/blog-do-grri/tisa-a-pior-ameaca-aos-servicos-ja-vista-5750.html
(EcoDebate, 09/12/2015) publicado pela IHU On-line, parceira editorial da revista eletrônica EcoDebate na socialização da informação.
[IHU On-line é publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos Unisinos, em São Leopoldo, RS.]
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