As diferentes compreensões sobre família e as lutas sociais a que elas estão vinculadas
Família
Danilo e Fellipe são casados e têm um filho adotivo, Daniel. Já Ana tem duas filhas nascidas por inseminação artificial de sua companheira, Marcela. Marcos e Débora também são casados, mas não têm filhos. Divorciados, Carlos e Maria têm um filho, Gabriel. Mariana, por sua vez, vive com a avó desde que os pais morreram quando ela era um bebê. Agora responda: quantas famílias você contou entre os exemplos acima? Cinco? Três? Nenhuma? Os exemplos são fictícios, mas servem para ilustrar os dilemas concretos levantados por um debate que tomou força a partir da proposição de um Projeto de Lei polêmico na Câmara dos Deputados, o PL 6853/13, conhecido como Estatuto da Família. Atualmente em discussão em uma comissão especial na Câmara, o projeto vem sendo criticado principalmente por conta de um artigo que reconhece como família apenas o “núcleo social formado a partir da união entre um homem e uma mulher, por meio de casamento ou união estável, ou ainda por comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes”. Militantes dos movimentos feminista e LGBT têm levantado questionamentos ao projeto que, segundo eles, cria distinções entre as diferentes composições familiares, ferindo o princípio constitucional da igualdade de todos perante a lei. Os proponentes do projeto, por outro lado, alegam que ele virá para “valorizar a família” num contexto em que se enfrentam questões complexas como a “epidemia” das drogas, a violência doméstica e até mesmo a “desconstrução do conceito de família”.
Em meio à controvérsia gerada pelo projeto, o site da Câmara dos Deputados abriu uma enquete em que as pessoas respondiam se concordavam ou não com o conceito de família proposto pelo projeto. Até o fechamento desta edição, tinham sido computados 8,2 milhões de votos: 52,7% favoráveis e 46,9% contrários. Para o deputado federal Anderson Ferreira (PR-PE), autor do projeto, o resultado apertado não reflete verdadeiramente a opinião geral dos brasileiros sobre a matéria, uma vez que, para ele, os movimentos contrários ao projeto se articularam nas redes sociais para votar maciçamente contra a definição. “Era uma forma de eles mostrarem que a sociedade está dividida, o que não é verdade. A maior parte da sociedade é cristã, comunga com o que diz o projeto”, afirma o deputado. Segundo ele, a iniciativa de apresentar o projeto de lei partiu da constatação de uma “ausência de pautas em relação à valorização da família” no Congresso. “Acho que a gente tem que buscar essa valorização, principalmente agora que vivemos um conflito diante de tudo o que a gente tá vendo, como essa manifestação da Parada Gay que chocou toda a sociedade brasileira ferindo todos os conceitos de família e também vilipendiando os objetos sagrados”, diz Anderson Ferreira, fazendo referência à performance de Viviany Beleboni, atriz transexual que desfilou na Parada do Orgulho LGBT de São Paulo em junho “pregada” em uma cruz, sob a inscrição “Basta de homofobia com GLBT”. “Eles estão confundindo liberdade de expressão com libertinagem”, completa o deputado. Para ele, pautas como a de “valorização da família” ganharam força na legislatura atual por conta das “investidas” dos movimentos de defesa dos direitos das populações LGBT. “A própria sociedade mostrou sua força diante das investidas que estava havendo desse movimento e aumentou sua representatividade no Congresso com parlamentares que se posicionam contrários, mais conservadores. O quadro hoje da representatividade dos deputados no Congresso é um reflexo da sociedade, porque eleitos pelo voto popular”.
Já para Débora Diniz, professora da Universidade de Brasília (UnB), mesmo que a definição de família do Estatuto espelhe a opinião da maioria da população, temas de ética privada como esse não são passíveis de regulamentação pelo Estado. “O Estado tem que proteger inclusive a sua menor minoria e garantir princípios amplos e coerentes de reconhecimento de diferentes projetos de felicidade, autorrealização e garantia de direitos, como é uma ideia de família”, aponta Débora, que defende que um conceito de família em consonância com as transformações sociais dos últimos anos precisa levar em conta outros critérios que não somente as relações de parentesco. “Famílias são todas as formas que as pessoas encontram de reproduzir-se socialmente, não necessariamente precisa ter reprodução biológica. Então família é todo encontro de pessoas que vão compartilhar aquilo que permite sua reprodução social. Pode ser renda, pode ser um teto, pode ser afeto, pode ser adoção e aí
também pode ser consanguinidade”, resume.
Famílias no Censo do IBGE
Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontam que a família “tradicional” formada por pai, mãe e filhos representa atualmente 49,4% do total de configurações familiares identificadas pelo Censo 2010. Casais sem filhos e mulheres sem cônjuge e com filhos representaram, respectivamente, 17,7% e 12,2% do total de famílias contabilizadas pelo instituto. “O conceito de família não está sendo desconstruído, a realidade das composições familiares está mudando e a própria Constituição de 1988 reconheceu isso”, afirma Toni Reis, secretário de educação da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT). Prova disso, para ele, foi a decisão do Supremo Tribunal Federal de 2011 que, a partir da interpretação da Carta Magna, votou, por unanimidade, pela inconstitucionalidade da distinção de tratamento legal às uniões estáveis constituídas por pessoas do mesmo sexo. Também segundo o IBGE, em 2013, a cada mil casamentos heterossexuais houve três uniões civis entre pessoas do mesmo sexo. O instituto contabilizou 3.701 casamentos homoafetivos naquele ano, sendo 1.926 entre mulheres e 1.775 entre homens. Segundo o instituto, atualmente há 60 mil casais homoafetivos no país.
Para Anderson Ferreira, caso o Estatuto seja aprovado no Congresso, decisões da Justiça como a que garantiu que casais homoafetivos tenham os mesmos direitos civis dos casais heterossexuais terão que ser revistas. “O Supremo e a Justiça são colegiados que não foram escolhas populares. O que tem representatividade popular é o Congresso Nacional, que é quem elabora as leis. Com a aprovação do estatuto, vai se reabrir a discussão sobre essas decisões que foram tomadas através de liminares”, aponta. O direito dos casais homoafetivos de adotar crianças, hoje também garantido por uma decisão do STF, é outro que terá que ser revisto, segundo ele. Em seu relatório sobre o projeto do Estatuto da Família, o deputado federal Ronaldo Fonseca inseriu no texto uma modificação do Estatuto da Criança e do Adolescente para exigir que as pessoas que queiram adotar sejam casadas civilmente ou mantenham união estável, constituída nos termos do artigo 226 da Constituição. Como o texto constitucional reconhece explicitamente apenas a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, na prática o substitutivo proíbe a adoção de crianças por casais homossexuais. “Na literatura existem estudos do fenômeno da ‘homoparentalidade’ desde 1975. Em sua esmagadora maioria, apontam que não há diferenças na capacidade de cuidar dos filhos; o bom desenvolvimento da criança ou do adolescente depende da qualidade da relação com os pais e mães, e não do sexo deles”, argumenta Toni Reis, que tem três filhos adotivos com seu marido. Ele também contesta o argumento, usado pelo deputado Ronaldo Fonseca em seu relatório, de que os jovens seriam alvo de preconceito por terem dois pais ou duas mães. “Eventuais preconceitos por terem dois pais são apenas mais uma forma de preconceito. A maioria das crianças ou adolescentes está sujeita a algum tipo de preconceito por ser baixo, alto, ter orelhas grandes, ser magro, acima do peso, falar com sotaque e assim por diante. A partir do momento que temos isso claro e percebemos que o problema não é nosso e sim da pessoa que ainda não aprendeu a superar seu próprio preconceito, deixamos de ligar para a opinião dela”, opina.
Retrocessos
Débora Diniz teme o retrocesso que uma lei como essa pode causar, e cita especificamente seus efeitos sobre as políticas de saúde, uma vez que o Estatuto estabelece prioridade no atendimento dentro do Sistema Único de Saúde (SUS) para a entidade familiar formada por pai, mãe e filhos. “Me parece de novo uma criação moralizante cujo coração pulsante é o controle de formas de reprodução social e de reprodução biológica. Nós não vamos conter famílias não heterossexuais, famílias gays, por um estatuto de família, a não ser que venhamos a acionar instituições do Estado de vigilância como a polícia. Ou estão achando que o SUS vai ser instância de vigilância? Vão dizer: ‘Não, mãe solteira, você não vai poder fazer pré-natal aqui porque não tem família’. Não consigo nem entender como isso seria materializado dentro do SUS”, questiona. Débora critica a maneira como esse debate vem se dando, a partir de um prisma moral. “Ele não está sendo um debate sobre os direitos, de atualização histórica. É um debate desrespeitoso, que ignora que temos um conjunto de outras formas de viver sexualidade, conjugalidade, filiação”, pontua, e completa: “O que há por trás dessa discussão é uma sobreposição entre a reprodução biológica, considerada naturalizada, e a reprodução social. A reprodução da sociedade, das comunidades e das famílias pode se dar por múltiplas formas que não por uma moral que naturaliza a heterossexualidade”, argumenta. Assim como o deputado Anderson Ferreira, ela também vê o projeto de lei como integrante de uma reação conservadora ao crescimento da visibilidade de movimentos que contestam a moral vigente no que diz respeito à sexualidade e aos direitos sexuais das mulheres, por exemplo. “Quando provocamos um debate sobre família, não é só sobre quem podemos desejar, ter vida sexual e nos reproduzir. Ele coloca questões sobre a origem e o sentido da vida, e isso é perturbador para um regime de poder que se perpetuou pelas instituições religiosas, jurídicas e policiais que naturalizam a heterossexualidade e que fazem uso dessas instituições para dizer que outras formas de família não devem existir”, analisa.
Matéria produzida por André Antunes, para a revista Poli nº 41 , julho/agosto de 2015
in EcoDebate, 27/07/2015
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