Belo Monte ainda é uma triste história sem final definido, por Telma Monteiro
Nota
Em atenção às mensagens que recebi, por email e pelo Twitter, pedindo para recontar a história de Belo Monte, resgatei e atualizei um artigo meu de 2010. Não tenho a pretensão de mostrar nada novo, mas de recuperar alguns momentos da trajetória do processo doloroso que tem sido Belo Monte. Tudo já foi escrito e falado com perfeição por muita gente boa, apenas creio que nunca é demais relembrar os fatos e tentar tirar deles algumas lições. Para aqueles que estão tomando conhecimento agora da luta contra Belo Monte, pode ser importante dar uma lida no texto.
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[Correio da Cidadania] Belo Monte está sendo construída no rio Xingu, um dos mais importantes afluentes do rio Amazonas. A Bacia do rio Xingu ocupa dois estados na região Norte do Brasil: Pará e Mato Grosso. A construção de Belo Monte vai afetar globalmente Terras Indígenas, Unidades de Conservação e populações tradicionais, além de ameaçar a biodiversidade de um trecho de 100 quilômetros da Volta Grande do Xingu.
Duas barragens no projeto de Belo Monte vão criar dois reservatórios ligados por 40 quilômetros de canais escavados sobre rocha para desviar o Xingu e mais dezenas de diques de contenção das águas. Serão 668 quilômetros quadrados entre áreas de floresta, igarapés, leito do rio e áreas naturalmente sazonais e que serão permanentemente inundadas pelos reservatórios. Partes ainda não definidas da cidade de Altamira serão também alagadas pelo reservatório principal. A população sofre com a falta de informações confiáveis.
Estudos de vários especialistas apontaram a inviabilidade econômica, ambiental e social de Belo Monte. O rio Xingu é um rio sazonal que corta a Amazônia onde os períodos de cheia e seca são muito acentuados.
Especialistas afirmam ser impossível gerar 4.500 MW médios (é a máxima produção de energia que pode ser mantida quase que continuamente pelas usinas hidrelétricas ao longo dos anos) de energia barrando um rio com as características e com o histórico de vazões do Xingu. O projeto é da estatal brasileira Eletrobrás, das empresas Camargo Corrêa, Construtora Norberto Odebrecht e Andrade Gutierrez e prevê a capacidade instalada (limite da produção ou a capacidade máxima de produção) de 11 mil MW. Na verdade, estudos comprovaram que pode chegar a apenas 1.200 MW médios no ano.
Belo Monte só produziria essa energia planejada por seus criadores se fosse acompanhada de outros barramentos de regularização a montante (rio acima).
O governo brasileiro afirma que o projeto, incapaz de produzir essa energia, exigirá investimentos da ordem de US$ 10,5 bilhões e empresas privadas já especularam que os valores podem chegar a US$ 16,6 bilhões.
A história de Belo Monte
Na década de 1970 o potencial hidroenergético da Amazônia brasileira foi alvo de muitos estudos e passou a ser prioridade para os setores de infraestrutura. O inventário hidrelétrico do Xingu foi elaborado pela empresa estatal Eletrobrás e sua subsidiária Eletronorte e a empresa privada Consórcio Nacional de Engenheiros Consultores S.A. (CNEC) do grupo Camargo Corrêa, uma das maiores empreiteiras do Brasil.
O inventário da Bacia Hidrográfica do Xingu previa, inicialmente, seis usinas hidrelétricas com 20.375 MW de capacidade instalada e 18.300 quilômetros quadrados de área alagada por reservatórios. Seriam cinco usinas no rio Xingu e uma no rio Iriri.
Na década de 1980 foram concluídos e entregues o Estudo de Viabilidade Técnico-Econômica (EVTE) de todo esse complexo hidrelétrico. No primeiro Plano Nacional de Energia Elétrica (PDEE) já se previa a construção de 165 usinas hidrelétricas até 2010, das quais 40 estariam na Amazônia Legal. No final dessa década foi aprovado o Relatório Final dos Estudos de Inventário Hidrelétrico da Bacia Hidrográfica do Rio Xingu em que constavam os seis aproveitamentos hidrelétricos. O destaque era a usina Kararaô, atualmente Belo Monte.
Durante o 1º Encontro dos Povos Indígenas do Xingu, os índios Kayapó protestaram contra a construção do Complexo Hidrelétrico do rio Xingu e contra as decisões tomadas na Amazônia sem a participação dos indígenas.
Na década de 1990 foram então concluídos os estudos de viabilidade de Belo Monte – os povos indígenas proibiram o uso do nome Kararaô – e foi também criado um grupo de trabalho para analisar a alternativa de construir os canais de desvio das águas do rio Xingu. O governo queria contornar o conflito gerado na região em decorrência da possibilidade de se construírem todas as seis usinas previstas.
Na década de 2000, foi assinado um acordo de Cooperação Técnica entre a Eletrobrás e Eletronorte com o objetivo de complementar os estudos de viabilidade de Belo Monte e incluir os canais de desvio das águas do Xingu. Essa é a configuração atual do projeto que está sendo construído. Mesmo esse projeto atual já sofreu alterações depois que foi licitado, em 2010.
Ainda na década de 2000, foi aberto na Fundação Nacional do Índio (Funai) o processo para acompanhar o licenciamento ambiental de Belo Monte. O Ministério de Minas e Energia (MME) aproveitou para anunciar um plano de emergência de US$ 30 bilhões para aumentar a oferta de energia no país com a construção de 15 usinas hidrelétricas, entre elas, Belo Monte.
Em 2001, o Ministério Público Federal (MPF) moveu a primeira Ação Civil Pública (ACP), atendendo as reivindicações da sociedade, para suspender os Estudos de Impacto Ambiental (EIA) de Belo Monte. O pedido foi aceito pela justiça e o projeto passou a ser licenciado pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e não mais pelo governo do estado do Pará. O rio Xingu é um rio federal e compete ao Ibama o licenciamento ambiental de qualquer aproveitamento planejado para ele.
Um dos argumentos fundamentais do MPF foi de que os estudos ambientais deveriam considerar toda a Bacia do Xingu, e não apenas uma parte dela, como o governo brasileiro havia determinado. Em 2004, em nova ação, o MPF apontou falhas no processo de licenciamento ambiental de Belo Monte e conseguiu obter na justiça a paralisação do processo.
Apesar das sentenças favoráveis em primeira instância, em 2007 o Tribunal Regional Federal mandou dar continuidade aos estudos e o governo incluiu Belo Monte no Plano de Aceleração do Crescimento (PAC). Para saber mais sobre as ações do MPF contra Belo Monte, acesse o blog Belo Monte de Violências do procurador do MPF do Pará, Felício Pontes Jr.
O governo desistiu temporariamente dos demais aproveitamentos hidrelétricos no rio Xingu e definiu em resolução do Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) que Belo Monte seria o único potencial a ser explorado no rio Xingu. Essa decisão, no entanto, poderá ser revogada a qualquer tempo, por outra resolução.
No início de 2009, os Estudos de Impacto Ambiental e respectivo Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA) foram encaminhados para análise do Ibama. Só em abril desse mesmo ano foram entregues os estudos do componente indígena para a análise e parecer da Funai.
O Ibama solicitou aos proponentes do projeto novos relatórios complementares com a análise integrada do componente indígena. As audiências públicas para apresentação e discussão do EIA/RIMA foram realizadas nos municípios de Brasil Novo, Vitória do Xingu, Altamira e Belém. Elas não foram suficientes para dar vazão aos questionamentos das populações e dos povos indígenas que serão afetados ou sequer foram suficientes para esclarecer as dúvidas da sociedade. Nova ACP do MPF do Pará pediu o cancelamento das audiências.
O projeto Belo Monte
O projeto da hidrelétrica Belo Monte é tão inverossímil que os 26 quilômetros de canais que serão escavados em rocha, idealizados para fazer o desvio de 80% das águas do rio Xingu, variam entre 400m e 750m de largura e serão revestidos com uma camada de 10 cm de concreto. Com o desvio de cerca de 80% das águas do rio Xingu, através do canal artificial, na altura da barragem principal, a Volta Grande do Xingu – um grande meandro do rio e região dos pedrais – terá a vazão reduzida num trecho de 100 quilômetros.
Essa solução mágica que deixará fluir apenas 20% das águas para a Volta Grande é chamada de “vazão ecológica”. Os 80% desviados vão abastecer o reservatório dos canais para acionar as turbinas da casa de força principal. A alteração no fluxo das águas vai criar uma verdadeira hecatombe ambiental que se refletirá até a foz do rio Amazonas. Se conseguirem construir Belo Monte, os impactos negativos afetarão diretamente terras dos municípios de Vitória do Xingu, Altamira e Brasil Novo.
O processo de licenciamento ambiental
Em novembro de 2009, a equipe técnica do Ibama emitiu um Parecer Técnico pedindo novas complementações aos estudos ambientais. Os técnicos concluíram que não havia elementos suficientes para a concessão da Licença Prévia (LP) de Belo Monte. Em 1 de fevereiro de 2010, contrariando todos os argumentos técnicos de especialistas e da própria equipe, o presidente do Ibama assinou a LP acrescentando 40 condicionantes.
Essas condicionantes postergaram os esclarecimentos necessários de todas as questões pendentes nos estudos ambientais. A LP foi concedida sob pressão política do governo.
O leilão de venda da energia de Belo Monte foi realizado em 20 de abril de 2010. Duas novas ações do MPF e uma ação ajuizada pelas organizações Kanindé e Amigos da Terra Amazônia Brasileira não tiveram sucesso para impedir o leilão. O governo tinha organizado uma força tarefa com mais de 100 advogados para derrubar qualquer decisão favorável ao cancelamento da licitação.
Na semana que antecedeu o leilão, as principais empresas que iriam concorrer desistiram, sob a alegação de que os estudos de viabilidade técnico-econômica não eram confiáveis. Outras empresas sem conhecimento técnico da região, dos impactos ambientais, dos conflitos sociais, foram convidadas na última hora para preencher a lacuna deixada. Eram necessários no mínimo dois consórcios de empresas para legitimar o certame.
Dois grupos concorreram ao leilão. O azarão, um consórcio liderado pela estatal Chesf e formado por empresas menores, foi criado para preencher a ausência e dar uma falsa ideia de concorrência. O mercado do setor de energia apostava que esse consórcio criado no afogadilho perderia, mas para surpresa geral, acabou vencendo. As grandes construtoras que desfizeram as parecerias antes do leilão, na verdade, não tinham em mente um negócio de geração de energia, mas um negócio de construção. Queriam, mesmo, fazer as obras civis. O faturamento de quem constrói uma grande obra entra antes.
As desistentes, as mesmas empresas que elaboraram os estudos, recuaram movidas pelas incertezas sobre os custos ambientais e sociais, pela exposição da inviabilidade financeira e pela incrível resistência dos movimentos sociais e dos povos indígenas do Xingu, que voltou com mais força depois de 20 anos. As empreiteiras que idealizaram com a Eletrobrás esse monstro no rio Xingu, sempre tiveram um único interesse: fazer a obra, faturar antecipadamente e lucrar muito com a construção.
Para os vencedores, aqueles laçados na última hora para concorrer ao leilão, no entanto, as promessas do governo garantiam rentabilidade. O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) já está financiando 80% dos investimentos necessários para construir Belo Monte, com prazo de pagamento de 30 anos e juros de 4% ao ano.
Desses 80%, parte é do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT). Dinheiro dos trabalhadores brasileiros para financiar um grande projeto de risco. Além disso, o governo concedeu um pacote de benesses para estimular a participação no leilão; o consórcio vencedor terá um desconto de 75% no imposto de renda durante 10 anos e isenção de taxas federais durante as obras.
Mesmo assim, o leilão quase não ocorreu por falta de participantes. Os motivos estariam desde as incógnitas do projeto com relação às escavações em rocha dos canais até as dúvidas sobre os custos socioambientais, não completamente transparentes na época. Houve quem dissesse que a questão principal estaria na quantidade de energia que seria gerada pela chamada “hidrelétrica sazonal”. Até o momento, Belo Monte ainda é considerada um bom negócio, tanto pelo governo como pelas empresas.
Os impactos sociais e ambientais
As áreas consideradas diretamente afetadas não foram objeto de estudos aprofundados e atingirão uma população muito maior do que aquela mencionada no EIA/RIMA. A perda de biodiversidade no trecho da Volta Grande e o deslocamento compulsório da população rural e urbana foram minimizados; a avaliação dos impactos na saúde subestimados; os riscos à segurança hídrica e os custos das externalidades continuam sendo omitidos.
O aumento do movimento migratório está ameaçando o equilíbrio da região, que já é frágil. Altamira já registra índices de aumento da violência, de prostituição, de demanda por infraestrutura e de preços de aluguéis e serviços. A pressão sobre as terras indígenas com invasões, especulações imobiliárias e desmatamento já se tornaram duras realidades em outras regiões da Amazônia que receberam ou que têm projetos hidrelétricos em construção. Vejam-se os problemas insolúveis da região onde estão implantando as usinas do Madeira.
Todos os impactos decorrentes da construção da hidrelétrica de Belo Monte já foram e têm sido apontados à exaustão. Seja pelo Ministério Público, seja pelos especialistas, seja pelos movimentos sociais, seja pelas ONGs, seja pelos programas de TV, artigos e análise veiculados na mídia. Belo Monte ainda é uma triste história sem final definido. A sociedade brasileira vai ter que criar coragem para escrever seu final, pois é dele que depende a sobrevivência da Amazônia.
Telma Monteiro é ativista socioambiental, pesquisadora, editora do blog http://www.telmadmonteiro.blogspot.com.br, especializado em projetos infra-estruturais na Amazônia. É também pedagoga e publica há anos artigos críticos ao modelo de desenvolvimento adotado pelo Brasil.
Artigo originalmente publicado no Correio da Cidadania, parceiro editorial do portal EcoDebate, na socialização da informação.
Publicado no Portal EcoDebate, 03/07/2015
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Camargo Corrêa, Construtora Norberto Odebrecht e Andrade Gutierrez, estas três empresas estão sendo investigadas por corrupção na Lava-jato, por contratos superfaturados com o estado brasileiro.