O mito do amor materno e as políticas pronatalistas, artigo de José Eustáquio Diniz Alves
“Nem toda mulher nasce para ser mãe
e nem toda mãe é mártir”
Lya Luft
“O que se deve condenar não são as mães,
mas a ideologia que incita todas as mulheres a se tornarem mães”
Simone de Beauvoir
Imagem: Livraria Folha
[EcoDebate] Na maior parte da história humana, as mulheres tiveram o papel de garantir a reposição da população por meio de altas taxas de fecundidade. Esta era uma “imposição” de uma época em que as taxas de mortalidade eram muito elevadas, especialmente as taxas de mortalidade infantil. A opção existente era: ter muitos filhos ou ver a população diminuir, ou mesmo desaparecer. As mães eram “heroinas” confinadas ao espaço doméstico e da reprodução. Mesmo sendo uma construção social, a maternidade era vista como um instinto, uma tendência feminina inata.
Mas esta situação começou a mudar – especialmente no século XX, começando pelo mundo ocidental – quando as taxas de mortalidade infantil começaram a cair rapidamente, aumentando o número de crianças sobreviventes. Após a transição epidemiológica, para se repor a população, bastava algo em torno de dois ou três filhos. Assim as mulheres não precisavam mais ficar todo o período reprodutivo (15-49 anos) dedicadas às tarefas da reprodução e da maternidade. Vivendo mais e dedicando menos tempo à reprodução abriu-se espaço para as mulheres abandonarem o confinamento doméstico.
Na Primeira Onda do feminismo (final do século XIX até aproximadamente 1960), as mulheres foram para as ruas exigirem o direito de voto (movimento sufragista), o direito à educação e ao trabalho e outros direitos civis e políticos. Por exemplo, Simone de Beauvoir, no livro “O segundo sexo”, mostrou que a noção de mulher é uma construção social e não um fato biológico: “Não se nasce mulher, torna-se mulher”.
A Segunda Onda do feminismo ganhou força a partir dos anos de 1960 quando as mulheres buscaram romper com os padrões tradicionais, combatendo a opressão, exigindo o fim de toda discriminação e segregação, buscando implementar a completa igualdade entre os sexos e combatendo as estruturas sexistas de poder. A luta pela “libertação sexual” ganhou uma dimensão importante, inclusive com o questionamento de que as mulheres teriam satisfação em apenas cuidar dos filhos e do lar.
Na segunda metade do século XX, o feminismo ajudou a reconfigurar o quadro econômico e demográfico do mundo, em especial, nos países com maiores níveis de renda e desenvolvimento. As mulheres entraram em massa nas universidades e no mercado de trabalho, enquanto as taxas de fecundidade caíram abaixo do nível de reposição e o envelhecimento populacional passou a ser a característica marcante da transição da estrutura etária.
Desta forma, não tardou a surgir o contra-ataque antifeminista, abrindo uma guerra declarada contra as mulheres independentes, autônomas e empoderadas, buscando reverter a busca feminina pela igualdade. Os setores conservadores, reforçando a divisão sexual do trabalho, dividiram a vida das mulheres em duas: emprego e lar, dizendo que este último era o único caminho para uma existência completa e satisfatória. Se as mulheres resistiam a essa imposição, eram alvos de punições psicológicas e materiais. Num contexto de baixas taxas de fecundidade, as políticas pronatalistas passaram a reforçar o mito do amor materno.
Como mostrou Elisabeth Badinter, as mulheres de hoje estão sob uma pressão cada vez maior para ter filhos. Mas não é mais suficiente apenas ser mãe, elas precisam ser mães perfeitas que só amamentam no peito, que ficam em casa com os filhos por bastante tempo e que os criam da melhor forma que podem.
Segundo Badinter (30/08/2010): “Estamos vivendo atualmente uma fase complicada de nosso desenvolvimento, uma volta a um tempo que já passou. Na França, chamamos esse fenômeno de ‘a criança rei’, ou ‘a criança é o rei’. De acordo com essa visão, os interesses da mãe são claramente menos importantes do que os da criança; eles são secundários. E isso, por sua vez, traz consigo o desejo de que a criança seja perfeita. Muitas das jovens mães de hoje acreditam que se fizerem o esforço de ficarem em casa e se dedicarem completamente a seus filhos, querem que eles sejam perfeitos também: perfeitamente educados, inteligentes, equilibrados, em harmonia com a natureza. Eu honestamente me pergunto como isso afeta a criança a longo prazo”.
A filósofa francesa Elisabeth Badinter teve três filhos e não é contra a maternidade, mas sim contra o mito do amor materno e as tentativas de restaurar a antiga ideologia da segregação sexista. Segundo ela: “Não há um único estilo de vida feminino e se formos um pouco lúcidos, reconheceremos que há muitas mulheres que farão melhor se jamais forem mães”. Os defensores de políticas pronatalistas deveriam ler os trabalhos de Badinter e evitar jogar os custos do natalismo sobre os úteros e ombros femininos.
Referências:
BADINTER, Elisabeth. Um Amor Conquistado: o Mito do Amor Materno, Nova Fronteira, 1985
http://www.redeblh.fiocruz.br/media/livrodigital%20%28pdf%29%20%28rev%29.pdf
BADINTER, Elisabeth. Mulheres não são chimpanzés, Entrevista, IHU, 30/08/2010
http://www.ihu.unisinos.br/noticias/35833-%60%60mulheres-nao-sao-chimpanzes%60%60-diz-elisabeth-badinter
Elisabeth Badinter rechaça o ideal da maternidade atual e diz que não há um modelo único de mãe para ser seguido, entrevista a Renata Losso, IG, São Paulo, 02/06/2011
http://delas.ig.com.br/filhos/filosofa-francesa-critica-o-mito-da-mae-perfeita-em-novo-livro/n1596997426700.html
Utero Vazio http://uterovazio.blogspot.com.br/
MANGIACOTTI, Karen. Vamos parar de nos incomodar com mulheres que não querem filhos, Huffington Post, 19/12/2014 http://www.brasilpost.com.br/karen-mangiacotti/vamos-parar-de-nos-incomo_b_6341680.html?utm_hp_ref=brazil
José Eustáquio Diniz Alves, Colunista do Portal EcoDebate, é Doutor em demografia e professor titular do mestrado e doutorado em População, Território e Estatísticas Públicas da Escola Nacional de Ciências Estatísticas – ENCE/IBGE; Apresenta seus pontos de vista em caráter pessoal. E-mail: jed_alves@yahoo.com.br
Publicado no Portal EcoDebate, 13/05/2015
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